FORMULATION OF A SIDEWALK ACCESSIBILITY INDEX
In: Journal of urban and environmental engineering: JUEE, Band 1, Heft 1, S. 1-9
ISSN: 1982-3932
93 Ergebnisse
Sortierung:
In: Journal of urban and environmental engineering: JUEE, Band 1, Heft 1, S. 1-9
ISSN: 1982-3932
In: Relaciones internacionales: revista de la Escuela de Relaciones Internacionales, Band 95, Heft 2, S. 117-138
ISSN: 2215-4582
This essay discusses how criminal organizations in South America have reconfigured themselves in the face of the pandemic scenario experienced since late 2019. In particular, it examines how the practices and actions carried out by these associations were carried forward in the pandemic, maintaining or even giving force the influence of crime on the life of South American society. It is argued that in order to understand criminal governance, it is essential to consider the discussion of how the territories in which these organizations operate are not in conflict with the state, but rather there is a hybrid governance in which criminal organizations and the state coexist as two sources of legitimacy. and authority. There is a complementarity of actions, in which criminal organizations were seen during the pandemic occupying state functions in the adoption of protective measures, and provision of assistance, but always with a clear objective of maintaining the status quo of their illicit activities. In the end, it is clear that criminal organizations have consolidated themselves as a governance space recognized as legitimate during the pandemic, complementing and, perhaps even, eclipsing the role of state bureaucracy in the face of the seriousness of the health emergency experienced, especially in the cases of Brazil and Colombia.
In: Crime, law and social change: an interdisciplinary journal, Band 75, Heft 5, S. 507-510
ISSN: 1573-0751
In: European journal of cultural and political sociology: the official journal of the European Sociological Association (ESA), Band 4, Heft 2, S. 239-242
ISSN: 2325-4815
In: Anthropological journal of European cultures: AJEC, Band 26, Heft 1, S. 17-34
ISSN: 1755-2931
This article deals with the author's personal narratives and expectations vis-à-vis world-changing events between 1989 and 1991. It illustrates the ways in which the Cold War and its end, as well as the Soviet Union and its end, represent powerful psychological factors in personal narratives of growing up and giving meaning to the world. In an autoethnographic manner, it approaches research and writing from the perspective of the researcher's experience in order to produce new layers of understanding about the world. It builds on the assumption that big events on the world stage are composed of micro-stories that both nourish them and are nourished by them, and in so doing it makes the micro and the macro two inseparable, interwoven approaches to cultural experience and change. A conversation is forged between past and present, expectations and delusions, life of author and life of Europe, personal new beginnings and continental cul-de-sacs.
In: Revista brasileira de ciência política, Heft 11, S. 169-191
ISSN: 2178-4884
Analisar e conhecer o universo social é sempre intervir nele, ao contrário do que acontece com as ciências duras ou naturais, pelo que refletir sobre os pressupostos, as regras e as consequências da produção do conhecimento é o primeiro dos deveres da comunidade científica. O artigo pretende explorar as diferentes dimensões dessa questão e procede no sentido de demonstrar que num mundo cada vez mais complexo social e tecnologicamente torna-se crucial definir a relação entre o investigador e o universo social e justificar práticas de investigação com recurso a princípios e normas orientadoras. Para além de explorar os fundamentos metateoréticos e os diferentes paradigmas que contextualizam a problemática, o artigo descreve e analisa práticas consensuadas no âmbito da governação da investigação social no plano internacional desde 1945.
A demissão do primeiro-ministro socialista, José Sócrates, ficou a dever-se à rejeição, no Parlamento português, do PEC, o programa de estabilidade e crescimento que é necessário entregar todos os anos junto da Comissão Europeia para cumprir o Pacto de estabilidade do euro. Em momento de crise financeira, e com um governo de minoria, o PEC de 2011 transformou-se no centro da luta política entre socialistas e as oposições, de direita e de esquerda. Quando se iniciou a presente legislatura, no final de 2009, ficou desde logo óbvio que a vida do governo socialista de minoria depressa se tornaria difícil, e que seria uma questão de tempo a sua queda ou a sua demissão. O avolumar das dificuldades financeiras trouxe o assédio dos mercados e a contínua degradação do rating da dívida soberana, o que tudo junto foi deixando poucas dúvidas, aos mercados mas também aos parceiros europeus, sobre a capacidade de pagamento da dívida (que em poucos anos escalou dos 58% para os 100% do PIB). Durante meses, o governo socialista manteve-se em negação sobre a escalada da dívida e do défice público, acusando a oposição de direita de querer destruir os serviços públicos em nome de uma agenda neoliberal, e a oposição de esquerda de não ter agenda alternativa e de fazer o jogo da direita. Perante o assédio dos mercados financeiros e das agências de notação financeira, governo (socialista) e presidente da República (de direita), reiteraram que a ajuda externa era desnecessária, que a situação de Portugal era diferente das da Grécia e Irlanda, e que o país conseguiria resolver sozinhas as suas dificuldades. Não conseguiu, e quando os bancos nacionais declarando que não podiam arriscar mais comprar dívida pública, tornou-se óbvio que o país não conseguiria mais financiar-se no mercado nem pagar a dívida galopante. O mesmo primeiro-ministro que declarou não governar com o FMI, José Sócrates, foi aquele que assinou o pedido de resgate por parte da troika formada pelo FMI, Banco Central Europeu (BCE) e Comissão Europeia (CE), que se demitiu e declarou perante as câmaras das televisões que se apresentará às eleições de 5 de Junho como candidato a suceder a si próprio como primeiro-ministro, e com o programa limitado pelo acordo entretanto assinado com a troika. Uma das especificidades deste resgate, é precisamente o facto de ter sido negociado por três instituições (FMI, BCE e CE) e de prever o recurso ao fundo de estabilização do euro. Esta especificidade, que poderia tornar as negociações mais sensíveis a uma agenda europeia de crescimento económico, para lá das preocupações do FMI centradas no equilíbrio das contas e na estabilidade macroeconómica, tem riscos óbvios. O principal tem que ver com a necessidade de aprovação da operação de resgate por todos os países membros do euro, o que na Finlândia, por exemplo, passa pela obrigatoriedade da aprovação do Parlamento nacional. Com a negociação entre o governo português e a troika a decorrer no exacto momento da campanha eleitoral para as eleições legislativas finlandesas, a polémica estava servida. O resgate financeiro a Portugal tornou-se o tema principal da campanha finlandesa, e as forças de externa direita depressa procuraram capitalizar os sentimentos antieuropeístas para rejeitarem a ajuda a Portugal. Com uma expressão parlamentar considerável, o voto dessas forças será muito provavelmente decisivo. Como seria de esperar, e depois de algumas pressões vindas de Bruxelas, onde vários responsáveis europeus declararam não haver plano alternativo no caso de uma rejeição finlandesa, a extrema-direita daquele país parece começar a dar mostras de flexibilidade na sua posição, tudo em nome, claro do interesse nacional finlandês e do que o país poderá vir a ganha com esta operação financeira. Desta forma, no final de tarde do dia 3 de Maio, José Sócrates anunciou, pela televisão pública, no intervalo da transmissão do jogo da segunda mão da Liga dos Campeões entre o Barcelona e o Real Madrid, o acordo com a troika para o resgate financeiro. Depois de alguma especulação, a ajuda cifra-se em 75 mil milhões de euros, montante que deverá ser pago num prazo de 3 anos e envolve o agravamento do programa de austeridade e reforma do estado já previsto nos PEC dos anos anteriores (e cujas medidas concretas foram já descritas em Letras Internacionales). Depois de uma avaliação minuciosa das contas públicas, a troika determinou um prazo mais alargado para o cumprimento por parte de Portugal da meta de 3% para o défice. Esta meta, que deveria ser atingida já em 2012, passará para 2013 mas com o compromisso de chegar aos 5,9% este ano e aos 4,5% no próximo. No capítulo das medidas orçamentais para 2012, com o objectivo de reduzir a despesa, o Estado terá de reduzir o número de serviços já no próximo ano e congelar salários da função pública até 2013. Para o conjunto da administração central, prevêem-se medidas com um impacto de poupança anual de 500 milhões de euros, que o próximo Governo deverá ainda decidir, e que serão avaliadas pela troika já no início do próximo ano. Um dos sectores mais afectados será o da educação, com uma redução de custos de 195 milhões de euros no próximo ano (face a um orçamento de 6377 milhões este ano), o que deverá ser conseguido através da racionalização da rede escolar com a criação de agrupamentos de escolas, redução das necessidades de pessoal, centralização das compras e redução e racionalização das transferências para as escolas privadas com acordos de associação. Ficou decidida também a criação de uma administração fiscal única e a promoção dos serviços partilhados entre as diferentes estruturas do Governo. Serão reduzidas as transferências do Estado para os organismos públicos e outras entidades e reorganizado o fornecimento de serviços ao nível local, quer os das autarquias municipais quer os da administração central. O acordo estipula também que o conjunto dos salários do sector público, em percentagem do PIB, diminuirá em 2012 e 2013, apesar de se prever que a recessão de 2% se estenderá por dois anos. Este objectivo será conseguido com a limitação das admissões na administração pública, com o objectivo de obter diminuições anuais de pessoal de um por cento ao ano até 2014, e de dois por cento nas autarquias. As pensões de reforma superiores a 1500 euros também sofrerão cortes proporcionais entre 5% e 10% como o que aconteceu aos salários da função pública no PEC III aprovado em 2010. A crise das dívidas soberanas está finalmente a colocar a em dúvida o próprio futuro da moeda comum na Europa, com os críticos a regressarem às velhas questões de que uma zona monetária só pode manter estabilidade se dispuser de mecanismos para impor políticas económicas e uma fiscalidade unificada. Para os países periféricos da União, o tempo também é o de repensar a forma apressada como quiseram integrar o pelotão da frente da integração europeia sem as condições necessárias, nem a vontade política, para fazer as verdadeiras reformas do estado e da economia que se impunham. Durante os últimos dez anos, os governantes portugueses acharam possível manter uma política de gasto público galopante e incentivo dos gastos privados ao mesmo tempo que a produção da riqueza nacional descia bruscamente e ao mesmo tempo que na noção de solidariedade no seio da Europa se transformou e perdeu a força que adquiriu nos anos que se seguiram à queda do muro de Berlim. Como gosta de afirmar o conhecido historiador português Vasco Pulido Valente (VPV), e a propósito das querelas que têm envolvido as reacções à crise das dívidas soberanas, hoje a solidariedade na Europa é uma fantasia. Os países ricos desprezam o desleixo de Portugal, mas Portugal também não perde um segundo com as pequenas tiranias que vão reaparecendo a Leste, como a da Hungria. No cepticismo de VPV, a comédia (europeia) acabou ou, pelo menos, já não dura muito.*Doctor en Relaciones Internacionales. Profesor de Relaciones Internacionales de la Universidad Técnica de Lisboa (UTL)
BASE
Pela terceira vez desde a revolução de abril de 1974, o governo português foi em março de 2011 obrigado a pedir a intervenção do FMI para resolver uma situação financeira anunciada pelos mercados durante longos meses e que colocou o país à beira do incumprimento (default). Anteriormente, em 1978 e 1983, o recurso ao FMI pareceu uma inevitabilidade para um país saído de uma ditadura de quase 50 anos e lançado para o caos económico e financeiro por uma elite política sem experiência de governação e que carregava o peso de descolonizar, desenvolver e democratizar. Depois de abril de 1974, o país descobria o fosso político, económico e social que o separava da Europa, precisava de pôr fim a uma guerra colonial que durara quase 25 anos e de integrar milhões de cidadãos que regressavam das colónias deixando para trás os seus haveres e as suas fontes de sustento. Após abril de 1974, o país também redescobria a política e a dificuldade de encontrar o caminho para a estabilidade governativa que permitisse seguir um programa coerente. O regime, que começou por ser semi-presidencialista ao estilo francês, determinou uma competição política férrea entre o presidente da República e o primeiro-ministro, ambos disputando uma legitimidade política que lhes vinha directamente das urnas. Ainda assim, os governos minoritários, de coligação ou de iniciativa presidencial sucederam-se até 1987, deixando um rasto de instabilidade política e confronto pessoal entre os principais dirigentes de tidos os quadrantes ideológicos. O carácter socializante da revolução de 1974 deixou as suas marcas nos programas de todas as forças políticas, e foram precisas quase duas décadas de negociação do texto constitucional para libertar a política e a economia dos constrangimentos ideológicos revolucionários. Para cúmulo, o ano de 1975 assistiria a uma série de movimentações políticas que puseram o país à beira da guerra civil. No mês de março uma tentativa de golpe esquerdista abortada por um novo golpe militar em novembro e o regresso à legalidade constitucional. Em 1978 e 1983, as dificuldades financeiras e as negociações com o FMI apanhavam o país no meio deste vendaval político, mas também já a meio das negociações para a adesão às Comunidades Europeias. Destra forma, o recurso ao FMI aparecia como o remédio inevitável no caminho da convergência europeia e um instrumento para que o país alcançasse a estabilidade financeira indispensável para tal. Ainda que sempre envolvido nas polémicas da ingerência e da perda da soberania, o recurso ao FMI rapidamente foi assimilado na narrativa quase épica da adesão à Europa como provação necessária antes da promessa do fim da História. O generoso estímulo europeu à convergência social acabaria por mudar a face do país, mas também condenou a indústria pesada, o sector das pescas e a agricultura do país. Mesmo assim, as pequenas e médias empresas alargaram o seu mercado, foi possível atrair investimentos avultados das grandes empresas transnacionais e o sector dos serviços transformou-se, em poucos anos, numa marca da transformação do país. Com o acesso ao crédito muito facilitado, o consumo disparou e aquilo que era um mercado muito fechado de repente passou a ser muito apetecível para os grandes exportadores europeus. A adesão à moeda única desembaraçou ainda mais os constrangimentos ao consumo, com a queda histórica das taxas de juro reguladoras do BCE, e às trocas intra-europeias mas retirou ao governo português um instrumento de competitividade da economia que utilizara recorrentemente desde 1974, a desvalorização da moeda. Assim, a primeira década do século XXI é marcada pela estagnação económica e pela explosão do endividamento público e privado. A estagnação económica deveu-se ao esgotamento de um certo modelo de crescimento assente na mão-de-obra barata e na maior competitividade que certos países puderam fazer nesse âmbito, os países do Leste europeu, por exemplo, mas também a China. Mas também se deveu à adesão a uma zona monetária que não dispõe de instrumentos de harmonização fiscal nem real forma de promover a convergência económica ou financeira. Contudo, e parte de uma zona monetária de prestígio, o estado português passou a poder financiar-se junto dos mercados a preços 'alemães'. Com o consumo privado em alta, o sistema bancário também se endividou para corresponder à procura de crédito, o que dinamizou o sector imobiliário e inflacionou o preço das casas. Num primeiro momento, a crise do subprimeafectou pouco Portugal, mas à medida que as consequências da crise americana chegaram à Europa, o contágio passou a ser inevitável. Uma economia aberta, periférica e vulnerável aos movimentos dos mercados dificilmente conseguiria resistir sem recorrer à ajuda externa. Ironicamente, a desconfiança e pressão dos mercados agravou-se fruto da aplicação das próprias regras europeias no imediato pós-crise de 2008-2009. Fruto desta, a generalidade dos governos europeus interrompeu o programa de consolidação orçamental, que é a base do pacto de estabilidade financeira da zona euro, para acudir às necessidades sociais e ao crescimento do desemprego. Mas a ortodoxia macroeconómica vigente depressa obrigaria a regressar ao pacto de estabilidade, e com rigidez acrescida, de forma que, até 2013, o défice público dos países da zona euro deverá descer até aos 2% do PIB. Para países que assumiram encargos derivados da crise, a situação pareceu dramática, e viram-se com défices, reais ou forjados, de 9% como Portugal ou mesmo 13% como a Grécia. No caso da Irlanda, o resgate forçado dos bancos por parte do estado fez disparar o défice público para os 32% do PIB em 2010. Perante a dificuldade de cumprir as metas do pacto de estabilidade, os mercados passaram a distinguir o risco dentro da zona euro e as agências de notação depressa fizeram reflectir essa desconfiança na avaliação das dívidas soberanas e dos bancos. Entre Março de 2010 e Março de 2011, as dificuldades de financiamento e a subida dos juros colocaram a Grécia, a Irlanda e Portugal à beira do incumprimento, com os dirigentes europeus preocupados agora em evitar o contágio à Espanha.No último ano, e perante o adensar da pressão dos mercados e dos seus pares europeus, o governo socialista evitou a todo o custo o recurso à ajuda externa. Mesmo quando os juros da dívida ultrapassaram os 7%. Mas passado um ano sobre o resgate da Grécia, o agravar contínuo dos juros, a pressão dos bancos nacionais de que deixavam de comprar dívida pública por esta representar um risco intolerável, e a rejeição do programa de estabilidade e coesão (PEC4) no Parlamento, o primeiro-ministro Sócrates pediu a demissão e instalou-se a crise política. A questão do pedido de ajuda e resgate – e o regresso do FMI, neste caso em forma de 'troika' com os representantes da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu – é tão sensível que só foi possível proceder a ele após a dissolução do Parlamento, sendo mesmo polémico se um governo em gestão teria poderes para decidir um acto tão importante. Após 25 anos de integração europeia e de transformação de Portugal em país europeu, a chegada da 'troika' a Lisboa para impor as condições do resgate está já a impor uma reavaliação e uma leitura renovada da narrativa de sucesso da transição portuguesa desde 1974, das lógicas da integração europeia e do futuro da zona euro. *Doctor en Relaciones Internacionales. Profesor de Relaciones Internacionales de la Universidad Técnica de Lisboa (UTL)
BASE
Novembro de 2011. A crise da dívida nos países periféricos transformou-se na crise de toda a zona euro e demonstrou até que ponto as economias europeias estão viciadas no crédito e como a desconfiança dos mercados quanto ao pagamento da dívida está a contagiá-las a todas. Há dez anos, os parceiros europeus entravam em euforia com o lançamento da moeda comum e os mercados reagiam como se isso fosse suficiente para trazer também a convergência orçamental e fiscal típicas de uma entidade federal. O resultado foi a baixa histórica das taxas de juro para países com acesso limitado ao crédito, ao mesmo tempo que os critérios apertados para a adesão ao euro foram sendo descurados com o tempo, em alguns países, ou mesmo forjados, noutros, com o objetivo de garantir a adesão imediata a esse clube restrito.A indisciplina orçamental em alguns países da zona euro, tomemos o exemplo de Portugal e Espanha, tem causas muito diversas e não é justo culpar apenas os socialistas neste momento de crise terminal. É certo que os socialistas estiveram no poder em momentos críticos e durante uma parte importante do avolumar da crise atual, mas o problema é claramente estrutural e ultrapassa a conjuntura. Apesar da diferença de dimensão – a Espanha é a quinta economia da Europa e a décima segunda do mundo – Portugal e a Espanha partilham algumas caraterísticas estruturais que tornaram possível esta crise e que tornariam inevitável o contágio, a começar pelo elevado grau de integração das suas economias. A chegada da democracia em meados da década de 1970 trouxe a abertura do mercado e o investimento maciço do estado nas infra-estruturas com o objetivo de proceder a uma europeização rápida. A integração nas comunidades europeias (1986) trouxe os fundos estruturais que aceleraram o processo e permitiram uma convergência real com o nível de vida médio na Europa do Norte, além de permitirem reforçar o estado social, mas que também puseram à disposição do estado recursos impensáveis até então e que este utilizou para fidelizar clientelas e engordar os privilégios dos altos funcionários do estado.Como se torna evidente no momento atual, a negociação para a adesão de 1986 foi mais trágica para Portugal do que para Espanha, mas reflete prioridades a nível europeu que passaram pela diminuição e endividamento das economias periféricas e que se demonstram agora catastróficas. As transferências de rendimento em nome da solidariedade e convergência tiveram como moeda de troca, em Portugal por exemplo, o desmantelamento da economia – o afundamento real da agricultura e pescas e a evaporação da presença do estado no setor produtivo – e a concentração estratégica dos fluxos comerciais com os parceiros europeus. Ao abrigo da convicção liberal de que mais integração económica traria mais prosperidade e paz – independentemente de quais as regras que governariam essa integração – os países periféricos foram levados a dispensar os instrumentos clássicos para a promoção do crescimento e da competitividade, incentivados a abrir as fronteiras aos fluxos financeiros e ao investimento e, finalmente, lançados no jogo perigoso do endividamento público e privado, ao mesmo tempo que países excedentários como a Alemanha praticavam políticas orçamentais demasiado restritivas. Em termos gerais, os países que hoje são vistos como indisciplinados do ponto de vista orçamental tomaram opções discutíveis, não há dúvida, mas também é verdade que jogaram o jogo europeu de acordo com regras e estímulos provenientes de Bruxelas e de Berlim. E alimentaram, com essa indisciplina, o mercado para os produtores alemães. A crise da dívida não tem posto em causa apenas o modelo de solidariedade política em que assenta a União Europeia, cada vez que as opiniões públicas nacionais ameaçam bloquear a tomada de decisões para aplacar a crise; ela tem posto em dúvida a o caráter benigno do próprio modelo de integração e a sua contabilidade do deve e do haver para alguns países periféricos. Por fim, tantas são as dúvidas sobre o caráter benigno da europeização que parece indesmentível estar em marcha o processo que alguns já chama de descomunitarização, isto é, o processo através do qual a integração regride em algumas áreas e pode mesmo pôr em causa todo o modelo de integração. Seria uma espécie de spill-over de sentido contrário ao que os funcionalistas teorizaram nas décadas de 1950 e 1960, e em que a fragmentação da união monetária poderá acabar por estender-se a outras áreas da integração europeia. É o que se passa com as contínuas ameaças de expulsão da Grécia da zona euro, que poderia estender-se a outros países e que destapou, nas últimas semanas, os rumores de um plano franco-germânico para a criação de duas zonas monetárias distintas na Europa, uma a Norte e outra a Sul. A reacção contra o suposto plano por parte das instituições europeias e seus dirigentes foi violenta, do presidente da Comissão Durão Barroso ao presidente da zona euro Juncker, mas ganha adeptos no Norte da Europa uma qualquer reação restritiva como forma de conter o contágio que vem do Sul. A ausência de estratégia europeia para conter a crise da dívida deixou espaço para reações pontuais e descoordenadas dos diferentes parceiros, sempre mais preocupados em demonstrar aos mercados que o caso grego, e depois o irlandês e depois o português eram casos específicos sem qualquer paralelo com os seus países. Quando os mercados se lançaram sobre a Itália e a Espanha, não restaram mais dúvidas sobre o caráter europeu da crise, a insuficiência das respostas ensaiadas anteriormente e a solidez da solidariedade no continente. Os altos défices públicos da Itália e da Espanha só vêm demonstrar que também nas principais economias europeias o crescimento está dependente do crédito, barato e acessível até há bem pouco, mas que as elevadas injeções de crédito não se têm, nos últimos anos, refletido em mais crescimento nem num novo modelo de crescimento assente na inovação e na sustentabilidade. Pelo contrário, e a queda do crescimento na Europa nos últimos anos vem demonstrar que o modelo de produção de bem-estar é verdadeiramente o problema essencial no continente. O processo é o da perda contínua de competitividade das economias europeias, umas mais que outras, e a sua incapacidade para suster o modelo do estado de bem-estar criado após a segunda guerra mundial. Sem produção adicional de riqueza, o modelo europeu corre o risco de se esgotar e, com ele, o essencial da integração europeia. Está longe de ficar claro qual o modelo económico para a Europa que possa relançar o crescimento e tornar sustentável o bem-estar alcançado nas últimas décadas. A estratégia de Lisboa para tornar a economia europeia a mais competitiva do mundo até 2010 falhou, mas a única certeza é que só com mais integração se pode alcançar esse objetivo num futuro próximo. O que aliás está relacionado com as falhas da integração monetária. Também neste aspeto, só com mais governação económica – com mais poderes da Comissão de Bruxelas em matérias até agora de competência exclusiva dos governos nacionais - isso poderá acontecer. Não deixa de ser paradoxal que o modelo de intervenção e resgate para a Grécia, Irlanda e Portugal se tenha baseado em políticas orçamentais muito duras para cortar, no imediato, as despesas do estado e as dívidas de empresas públicas, estado central, autarquias e autonomias. O resgate português, negociado com a troika constituída por FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu foi acompanhado pela eleição de um novo executivo, de direita, cujo programa de governo assenta na aplicação do programa da troika. É um programa duro, que alguns caraterizaram como típico de tempos de guerra, e que inclui aumento brutal de impostos diretos e indiretos – que se soma aos aumentos constantes dos últimos anos – corte dramático nos salários e pensões, suspensão, para 2011 e 2012, do pagamento dos dois salários extraordinários, subida acentuada dos preços dos serviços públicos – transportes, saúde, educação – e racionalização dos mesmos recursos. A armadilha do programa da troika reside, como todos admitem e as projeções económicas para 2012 confirmam, em que estas políticas restritivas vão produzir mais recessão económica, prevendo-se um crescimento negativo para o próximo ano de 3% (mas um ligeiro crescimento positivo já para 2013). Contudo, o verdadeiro drama está em que a diminuição do défice orçamental e da dívida ficam dependentes, não só do clima económico na Europa mas também do grau da recessão provocada por estas medidas. Quanto mais austeridade mais recessão, e quanto mais recessão mais défice, menos capacidade de pagar a dívida, desemprego galopante, mais dúvidas e especulação dos mercados, mais juros sobre a emissão de dívida e mais dificuldade em regressar ao mercado para financiar a economia. A armadilha da dívida, e do programa da troika para a debelar, ameaça diretamente o que resta da soberania de alguns países europeus, a paz social e a democracia, assim como promete agravar os desequilíbrios sociais. No caso de Portugal, o orçamento para 2012, recentemente aprovado na generalidade e por estes dias em discussão na especialidade, é o mais duro e austero desde a implantação da democracia em Abril de 1974. Para um orçamento total de 79.557 milhões de euros, as receitas previstas são de 72.000 milhões. O que representa um défice de 7.557 milhões, ou seja, um défice de 6,7% do PIB que o estado financia através do Fundo de Estabilidade Financeira (FEEF) da União Europeia e do FMI. Do lado da receita, e em conjuntura recessiva e desemprego previsto de 13,4%, as contribuições sociais descem 5%, os impostos correntes sobre rendimento e património descem 1,7% enquanto os impostos sobre produção e importação sobem 4,1%. Para corresponder às exigências da troika, o grande ajustamento será feito do lado da despesa e do funcionamento do estado. A Saúde contará com menos 7,1%, os Negócios Estrangeiros com menos 9,4%, a Justiça com menos 8,4% e a despesa em educação baixará dos 5 para os 3,8% do PIB. Para o ministro das finanças Vítor Gaspar esta é a hora da verdade e 2012 marcará mesmo o momento em que as famílias sentirão, de forma dura, a inevitabilidade do empobrecimento. No total, as medidas de consolidação orçamental alcançarão, só em 2012, os 10.350 milhões de euros. Deste valor, 6.259 milhões representam medidas que ou retiram rendimentos às famílias ou aumentam os impostos que elas têm que pagar, o que totaliza, num só ano, 5% do rendimento disponível e se vem somar aos cortes já efetuados nos últimos dois anos para combater a crise. Em sede de IRS, por exemplo, e aos agravamentos sucessivos dos últimos anos, acrescem limites às deduções fiscais para todos os escalões menos os dois mais baixos, taxa adicional de 2,5% para o escalão mais alto, subida da taxa sobre mais-valias de 20% para 21,5%, além de uma taxa de 30% sobre transferências para paraísos fiscais. Daquele valor, 3.255 milhões correspondem a uma poupança conseguida através da contenção do estado, em grande parte por um corte das transferências para as autarquias e empresas públicas. O contributo das empresas privadas será através do agravamento dos impostos no valor de 655 milhões de euros. Quanto ao sistema bancário, mantém-se o valor em vigor de 25% de IRC e a taxa especial de 0,05% sobre o passivo dos bancos. E o esforço não ficará por aqui. Se para 2012 as políticas de austeridade pretendem colocar o défice nos 6,7% do PIB, a meta para 2013 é de 4,5% do PIB, o que agravará a tendência para o empobrecimento e para a limitação do consumo privado. Segundo as estimativas, e no que toca especificamente aos funcionários públicos, a perda acumulada de poder de compra será, entre 1997 e 2012, superior a 29%. Só em 2012 essa perda será de 17%.O agravar da crise nas últimas semanas desatou os alarmes relativamente a este encadeamento de problemas que afeta cada vez mais países europeus. O fim patético do governo Papandreu na Grécia foi desencadeado pela ideia mirabolante de convocar um referendo que confirmasse o segundo plano de resgate e as duras políticas de austeridade, na tentativa de aplacar a rebelião popular. A estratégia de Papandreu andou ainda misturada com rumores de golpe de estado militar e finalmente conduziu à sua demissão, à eliminação do referendo mirabolante e à constituição de um governo técnico encabeçado por Lucas Papadimos, um antigo vice-presidente do Banco Central Europeu. A crise condenou também o governo italiano, quando as taxas de juro da dívida se aproximavam perigosamente dos 7% - que acabariam por ultrapassar, já com novo governo - o limiar geralmente aceite para pedir resgate financeiro e impedir a bancarrota. Mais uma vez, um governo democraticamente eleito foi substituído por um governo técnico, não eleito – ainda que por um tempo limitado – até à realização de novas eleições. No caso italiano, o novo governo é encabeçado por Mario Monti – antigo membro da Comissão Europeia – mas o mandato é o mesmo, acalmar os mercados com um governo técnico, desligado da política, capaz de pôr em prática medidas de austeridade duríssimas sem ceder à violência de rua que tamanhas políticas provocarão tanto na Itália como na Grécia. No preciso momento em que escrevo estas linhas, acaba de cair outro governo por efeito da crise da dívida, o governo socialista de Zapatero nas eleições gerais deste domingo. Apesar dos esforços dos socialistas, os mercados não deram tréguas e os juros da dívida também se aproximaram nos últimos dias do patamar dos 7%. Mariano Rajoy, o novo presidente do governo espanhol, anunciou em campanha que cortará em tudo menos nas pensões de reforma. Seja como for, tanto em Espanha como em Portugal o processo democrático tem-se desenrolado com normalidade, sendo que os novos governos de direita contam com maiorias confortáveis no Parlamento e com o apoio – ou a resignação – das opiniões públicas. Ainda assim, são muitas as vozes que chamam a atenção para que estão criadas as condições empíricas para que se repita o fenómeno da subida ao poder de forças extremistas em vários países europeus, através de eleições ou manobras extra constitucionais.Quando a crise da dívida chega à Espanha e à Itália ela torna-se verdadeiramente europeia e as instituições inquietam-se. Pela primeira vez, é real a ameaça do colapso de todo o edifício e são cada vez mais as vozes que clamam por um Banco Central Europeu que assuma funções típicas de todo o banco central numa federação, como é o caso da Reserva Federal norte-americana. As famosas Eurobonds estão agora no centro da discussão, assim como a aplicação de taxas às transações financeiras, remédios que prometem agravar as tensões entre os parceiros europeus e protelar a tomada de decisões significativas para aplacar a crise. A Alemanha resiste à criação das Eurobonds, enquanto o Reino Unido se manifesta contra a taxa sobre transações financeiras que penalizaria a City londrina. Em última análise, a questão já chegou às negociações do G20, onde os europeus ansiavam pela ajuda para o reforço do FEEF. O compromisso não foi alcançado e Christine Lagarde do FMI já alertou para uma década perdida para o crescimento da economia mundial. Esta poderá bem ser a realidade dos próximos 10 anos um pouco por todo o mundo.*Doctor en Relaciones Internacionales. Profesor de Relaciones Internacionales de la Universidad Técnica de Lisboa (UTL)
BASE
Chamam-lhe crise da dívida soberana na Europa, chamam-lhe crise do euro e até crise dos PIGS, dos países periféricos de uma certa Europa. Chamam-lhe crise financeira, económica e dos mercados mas, na realidade, a profunda crise vivida no velho continente é, antes de mais, uma crise política que tem que ver com os paradoxos da construção europeia. Colocada de forma simples, a questão radica na construção de um federalismo monetário europeu, que culminou com a adoção do euro, que não foi replicado pelo necessário federalismo fiscal, orçamental, e das políticas financeiras e económicas. Assim hoje, os dezassete países da zona euro prescindiram dos instrumentos de política monetária – como a desvalorização da moeda, tão utilizada em tempos de crise – mas mantendo a capacidade soberana sobre a fiscalidade, o orçamento e as políticas de fiscalização dos respetivos sistemas financeiros, parcelares. E o mesmo se aplica às políticas de criação de riqueza e crescimento económico. No âmbito da moeda, surgiram instrumentos supranacionais; nos outros, os europeus enredam-se em instrumentos intergovernamentais.A presente conjuntura veio tornar mais óbvio este paradoxo e exigir uma resposta europeia a uma crise que, desde a cimeira extraordinária de 21 de Julho, passou a ser vista pelos dirigentes europeus como uma crise europeia, senão mesmo como uma crise da Europa. Mas foi preciso que o contágio grego pusesse em perigo uma economia tão central e determinante como a italiana. A narrativa da crise começou por sublinhar a especificidade dos problemas gregos e a necessidade de lidar com eles de uma maneira que evitasse o contágio a outras economias fragilizadas pelos efeitos da crise do subprime nos Estados Unidos. Lidar com o problema grego passou a ser mais uma das intermináveis maratonas intergovernamentais que consistem na conciliação de interesses e visões do mundo às vezes opostas. O que os europeus não perceberam desde o princípio da crise foi que negociar o resgate da Grécia não era o mesmo que negociar um novo tratado europeu e que falhar uma resposta eficaz para a crise teria consequências para toda a Europa difíceis de antecipar e de controlar. À medida que o resgate grego ia tardando, os mercados foram avolumando a sua desconfiança quanto à capacidade dos restantes países periféricos ultrapassarem as suas dificuldades conjunturais e a estabilidade da zona euro foi posta em causa. O contágio foi imparável e os mercados passaram a olhar para a zona euro como um conjunto díspar de países com diferente capacidade para honrar os seus compromissos financeiros. À especulação dos mercados juntou-se a incapacidade de alcançar uma resposta europeia e as agências de notação financeira (a Moody's, a Fitch e a Standard and Poor's) passaram a ser vistas como atores essenciais da gestão da crise, cada vez que descem o rating dos países afetados e agravam ainda mais a sua capacidade de financiamento no mercado.O atraso e deficiência na resposta europeia à Grécia, mas também a incapacidade desta última em forjar a unidade política interna necessária para pôr em prática um plano eficaz de saneamento financeiro – mas também, dirão outros, o estrangulamento económico promovido pelo plano da troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI) que atirou a Grécia para a recessão – avolumou a especulação sobre as dificuldades irlandesas e portuguesas – com a consequente subida galopante dos juros da dívida – e ambos países viram-se obrigados a recorrer ao Fundo europeu de estabilidade (FEEF) e, portanto, à ajuda externa. Em Portugal, esta conjuntura levou mesmo ao avolumar da crise política e o governo socialista, de minoria parlamentar, acabaria por se demitir ao ver rejeitado, pela oposição, o plano de ajustamento exigido pela Comissão Europeia, seguindo-se eleições legislativas. Assim, e ainda antes das eleições do passado 5 de Junho, o governo em funções viu-se obrigado a pedir a intervenção da troika e a negociar o plano de ajuda externa que alcançou um valor de cerca de 80 mil milhões de euros, uma taxa de juro de 5,7%, e teve como moeda de troca um plano radical de ajustamento da economia portuguesa. No entretanto, e com o agravar da situação financeira e dos pacotes de ajustamento, o cidadão comum viu-se obrigado a perceber de finanças internacionais, e são habituais as conversas quotidianas sobre o financiamento da República, sobre as agências de notação financeiras, sobre as subidas e descidas das taxas de juros e do rating, assim como do funcionamento do sistema financeiro global. Pode dizer-se que as dificuldades tornaram o cidadão comum mais consciente do mundo em que vive e alerta para as armadilhas do capitalismo global.No momento em que os socialistas deixaram o poder, e em que uma parte substancial da direita portuguesa se revoltou contra os mercados financeiros – novo governo e presidente incluídos – vale a pena prestar atenção às narrativas da crise e tentar perceber de que forma elas continuam a constituir um elemento central na legitimação da ação política e na luta entre governo e oposições. Em grande parte, aquilo que a crise realmente é depende da história que se conta dela e da arqueologia e genealogia que se faz das suas causas. Por isso mesmo, as questões mais recorrentes no discurso político até às eleições de 5 de Junho foram as de saber "Como se chegou até aqui?", "Que cadeia de decisões e fatores externos explicam ou ajudam a compreender a crise?" e "Que grau de consciência política caraterizou os atores políticos durante o processo?" Enquanto primeiro-ministro e secretário-geral do PS, José Sócrates preocupou-se em insistir que a crise se deveu a fatores exógenos ao país e às próprias opções políticas do seu governo. Mais ainda, e recorrendo à dimensão global, o argumento encerrava a lógica de que a crise colocava desafios graves à estabilidade do euro, da zona euro e mesmo à continuação do projeto europeu. Na narrativa da crise manipulada por José Sócrates (e isto porque uma narrativa é sempre uma manipulação dos fatos e da realidade, por quem quer que produza uma), o governo do PS carregava o fardo pesado da defesa do euro e da Europa, e só a solidariedade dos sócios europeus para com os países periféricos e a coesão nacional permitiram ultrapassar as dificuldades. Ao mesmo tempo, e procurando não perder terreno face às narrativas produzidas mais à esquerda, o PS lá ia arremetendo contra os mercados, especialmente contra as agências de notação financeira, transformando-os na cara mais visível dos interesses especulativos anti-Europa e anti-euro quando aquelas começaram a baixar a nota da dívida (o rating) da República e a apostar numa eventual bancarrota (o default). Sócrates via o seu governo e as suas políticas como baluarte da defesa dos interesses nacionais no meio de uma crise europeia cujo elo mais fraco passara entretanto a ser Portugal. A manipulação tornou-se evidente quando, no espaço de poucas semanas, o argumento passou de ser utilizado para justificar a recusa da ajuda externa do FMI/UE a justificar essa mesma ajuda. Enquanto isto, a oposição à direita produzia a sua própria narrativa da crise, quase que indiferente ao fato de um dia regressar ao governo e ser confrontada com uma nova perspectiva da realidade. Onde Sócrates só via fatores exógenos e crise global, PSD e CDS só viam políticas erradas e incapacidade de produzir mudanças estruturais. Quando o PS começou a arremeter contra especuladores e agências de notação, os mais liberais e o presidente Cavaco Silva lembraram que era escusado criticar a 'neutralidade dos mercados' que 'sabem bem o que se cá passa' e antes acatar os seus ditames teleológicos. Se ao menos Portugal voltasse a ser o aluno exemplar da Europa dos anos 80 e 90 (esse mesmo que condenou a agricultura e pescas e restante produção nacional de acordo com a lógica circular inerente à narrativa do aluno exemplar da Europa). Se algum programa o programa do novo governo do PSD tem é esse regresso à narrativa de Portugal-aluno-exemplar-da-Europa-que-há-de-resolver-todos-os-problemas-nacionais. A determinação do novo primeiro-ministro Passos Coelho tem relação direta com esta ilusão, e assim se justifica que quisesse ser mais troikista que a troika e antecipar resultados para impressionar a Europa (à custa do clássico aumento de impostos). E só assim é possível compreender que tenha recebido a decisão da Moody's de atirar para o nível do lixo a dívida portuguesa como um 'murro no estômago', logo no dia seguinte a os bancos portugueses terem passado com facilidade os testes de stress impostos pelo Banco Central Europeu. De repente, a onda de choque da decisão da Moody's transformou muitos liberais em críticos da cegueira dos mercados, e a sua narrativa da crise passou a ser povoada de fatores exógenos e teorias da conspiração contra o euro, em que Portugal é utilizado como mero instrumento do ataque à Grécia, e depois a toda a Europa, por insaciáveis especuladores financeiros. De tal forma que a panaceia parece agora ser para muitos a criação de agências europeias de notação, tão 'neutrais' como o próprio mercado, claro, e já agora benevolentes para com os desmandos de governação de quem nos trouxe até aqui e que quem nos governar no futuro será tentado, mais tarde ou mais cedo, a repetir.O comportamento das agências de notação no início do mês de Julho lançou uma onda de choque pela Europa, e desde a Comissão Europeia ao Banco Central, passando pelo governo alemão, soaram as campainhas de alarme como nunca antes tinha acontecido. Mais uma vez, foi o risco de contágio a economias que importam que provocou o alarme, designadamente quando a negociação interminável do segundo pacote de resgata da Grécia num ano prometeu incendiar a Espanha e a Itália com uma subida vertiginosa dos juros da dívida a curto prazo. As hesitações europeias não ajudaram, mas finalmente foi marcada uma cimeira extraordinária dos países da zona euro para o passado dia 21 de Julho, debaixo do feroz ataque de Helmut Kohl ao papel da Alemanha de Angela Merkel na condução dos negócios europeus. Depois de uma primeira declaração da chanceler alemã de que não seriam de esperar resultados espetaculares da cimeira, o encontro da véspera com o presidente francês Sarkozy deixou o caminho aberto para um consenso entre os 17 países do euro para um novo plano de resgate da Grécia, com consequências positivas para Portugal e a Irlanda certamente, mas também para a Espanha e a Itália e os restantes países da moeda única. Em primeiro lugar, vale a pena sublinhar que este avanço – que representou uma cedência da Alemanha quanto aos mecanismos de gestão da crise – resultou da recuperação do método da convergência franco-alemã, que tantos resultados tem produzido ao longo da construção europeia. Sem o consenso franco-alemão, tem sido muito difícil dar novos passos na construção europeia e superar os obstáculos do caminho. Assim, e face à iniciativa franco-alemã, desapareceram as reticências de países como a Holanda e a Finlândia, partidários da tese da punição aos países não cumpridores. Uma primeira decisão saída cimeira diminuiu assim os juros do empréstimo concedido através do FEEF, no caso português de 5,7% para 3,5%, o que representa um corto no serviço da dívida portuguesa na ordem dos 2 milhões de euros por dia. Também foi decidido um alargamento nos prazos de pagamento dos 7 para os 15 anos, podendo a assistência financeira para a consolidação chegar aos 30 anos. No caso grego unicamente, e este é o ponto mais controverso do acordo, os credores privados vão participar num plano de reestruturação da dívida que prevê a recompra da dívida grega no mercado secundário e uma efetiva perda do capital investido, ainda que de caráter voluntário, o que representa, para as agências de notação, um certa forma de incumprimento (default) e poderá voltar a repercutir-se sobre o rating da Grécia. Mas as reformas acordadas sobre a função e estrutura do FEEF representam uma verdadeira evolução no sentido federal e supranacional da Europa já que abrem o caminho para a emissão de dívida pública comum dos países da zona euro, os famosos eurobonds ou euro-obrigações, e a assistência monetária preventiva do futuro (a partir de 2014) Fundo Monetário Europeu aos países-membros ainda antes do deflagrar das crises e como forma de as evitar. Este tem sido o principal cavalo de batalha dos federalistas na Europa, a emissão de dívida comum que permita garantir e estabilizar a oferta de dívida nacional e assim transformar a zona euro em bloco coeso e mais preparado para resistir aos ataques especulativos do mercado. Sem dúvida que este momento crucial e difícil, como outros no passado, está a instigar respostas, ainda que hesitantes, mas que conduzem o projeto europeu para o próximo nível. E o próximo nível não pode deixar de ser, como apontou a cimeira de 21 de Julho, o da comunitarização da política orçamental e fiscal e dos instrumentos de controlo financeiro, do controlo democrático daquelas e da estratégia de crescimento económico. A propósito desta última, muitos pedem um verdadeiro plano Marshall para a Europa de hoje que, a par do controlo da dívida pública e da disciplina orçamental dos estados-membros, seja capaz de delinear e pôr em prática grandes investimentos e políticas crescimento económico equilibradas, coerentes e integradas a nível europeu. Seja como for, o próximo nível já só pode ser o da comunitarização do que falta comunitarizar e, a par dela, a construção coerente de um mecanismo democrático europeu capaz de exercer os famosos checks and balances sobre os sistema.*Doctor en Relaciones Internacionales. Profesor de Relaciones Internacionales de la Universidad Técnica de Lisboa (UTL)
BASE
A incredulidade europeia face à crise actual advém do facto de ela ser uma crise claramente produzida nos Estados Unidos da América, no coração do sistema capitalista norte-americano, que contagiou a Europa, onde as suas consequências são muito mais gravosas do que em qualquer outro ponto do planeta, ao ponto de estar a colocar em causa o modelo social europeu, a coesão social e o próprio futuro da integração regional no continente. Após esta crise – que, espante-se, Sarkozy descobriu que também é moral, após o descalabro francês no campeonato do mundo de futebol da África do Sul – o que ficará do estado de bem-estar e das leis de protecção do trabalho? O que ficará do estilo de vida europeu e da protecção da terceira idade? O que ficará da governação nacional e da democracia representativa parlamentar tradicional? Essas são as interrogações que todos colocam mas que ninguém se atreve a responder inequivocamente. Quando, dentro de uma década, as consequências mais profundas da crise – e dos seus remédios – puderem ser plenamente avaliadas e julgadas, que Europa terá sido entretanto produzida?Durante algum tempo, persistiu a pretensão de que a crise europeia não passasse de uma tragédia grega, o descalabro típico das contas dos países periféricos, sempre olhados com desconfiança pelas elites políticas e económicas do Norte europeu, uma tropa fandanga que não se sabe governar e tem de ser salva recorrentemente da bancarrota e posta na ordem. Diz muito do espírito 'europeu' com que a crise foi abordada o cordão sanitário que depressa foi lançado en torno da Grécia. Na ânsia de que a situação do seu país fosse destacada da da Grécia pelas agências de notação e instituições internacionais, os dirigentes europeus – e pasme-se, a própria Comissão europeia – foram agravando a desconfiança face à Grécia, o que equivaleu a dizer sobre toda a Europa numa lógica de contágio. A resposta a nível europeu foi tão tardia, descoordenada e inepta que ajudou a produzir o fenómeno que mais temia e que pretendia evitar, isto é, o contágio das economias estruturalmente mais – e também das menos – frágeis a partir da Grécia. A sucessão de declarações desastradas dos comissários europeus e dirigentes nacionais assustados deslocou as atenções para Portugal e Espanha e obrigou – nunca melhor dito – os seus dirigentes a apresentarem planos de austeridade que lembram os anos 1980 e a intervenção do FMI. O recorte de privilégios sociais e das medidas anti-crise previstas no plano de estabilidade e crescimento é hoje combatido na rua pelos sindicatos em verdadeiro espírito de cruzada sendo que, por enquanto, se tem evitado o populismo mais básico e a retaliação sobre os estrangeiros. Pelo menos em Portugal, onde o discurso extremista e abertamente xenófobo não colhe e se mantém sem qualquer expressão política. Mas o resultado das recentes eleições na Hungria, Bélgica e Holanda não augura nada de bom, podendo as primeiras vítimas desta crise vir a ser a coesão social e a convivência multicultural. É significativo que em Espanha tenho vindo a ser necessário agendar e aprovar, nas últimas semanas, a proibição da burka nos espaços públicos. Não está aqui em causa o mérito da questão, com a qual concordo genericamente, mas sim o que diz do momento político que vivemos e da ansiedade que em tempos de insegurança e incerteza se transmuta em instinto defensivo e reage intempestivamente contra o que é exterior e não compreende. Não é avisado redefinir as regras de convivência no interior de uma sociedade em momentos tão tumultuados, tal como se provou não ter sido avisado redefinir a relação entre segurança e liberdade sob pressão da guerra contra o terrorismo. A mesma que Obama declarou entretanto extinta. O diktat europeu a Portugal, Espanha e Grécia transforma-os nessa tropa fandanga da periferia da zona euro, muito por culpa própria – porque não perceberam as regras do jogo europeu, ou qual a margem de tolerância que tinham para o jogar – mas que também foi útil no enjeitar das responsabilidades dos definidores das regras do jogo. Passados alguns meses desde o desenrolar da tragédia grega e da aprovação das medidas de austeridade em Portugal e Espanha, os cortes orçamentais profundos já chegaram ao centro da Europa. Até 2013, a Alemanha obrigou-se a poupar 80 mil milhões de euros, a França 40 mil milhões, o Reino Unidos acaba de aprovar um pacote que pretende vir a reduzir o défice dos 10,1% de 2010 para 1,1% entre 2015 e 2016. Não nos enganemos; muita da despesa do estado europeu é inútil e perde-se no desperdício de uma máquina burocrática pouco habituada a prestar verdadeiras contas aos cidadãos. Outra parte importante da despesa é gasta na cooptação de funcionários públicos, um instrumento vital na estratégia de manutenção do poder por parte do partido político que o exerce. No desenrolar da crise, é preciso ser justo e não confundir os riscos de colapso do modelo social europeu com as oportunidades que se abrem de reforma profunda do estado. Eu diria que é um problema de metodologia e, estranhamente, de soberania. Se esta palavra ainda significa alguma coisa na Europa, significa certamente a capacidade de escolher a forma como se joga o jogo europeu. Aquilo que de mais revelador os acontecimentos últimos demonstraram foi a erosão adicional da soberania da Grécia, Portugal e a Espanha. Antes de mais, porque caíram no erro histórico de gastar muito mais do que a riqueza que são capazes de produzir e confiaram na quimera do dinheiro barato. Depois, e por causa do avolumar da dívida, perderam a capacidade para decidir quando e como pôr em prática o plano de ajustamento, o famoso plano de estabilidade e crescimento (PEC) anual que todos os países da zona euro são obrigados a apresentar à Comissão e que deve avaliza e aprovar. As pressões de Obama sobre Zapatero, e do Conselho Europeu de 6 de Maio sobre Zapatero e Sócrates mostraram a verdadeira natureza de uma decisão que ambos recusaram tomar até à última hora, por receio da inevitável degradação da sua base interna de apoio. As oposições, em ambos países, acusaram-nos de esconder durante meses a verdadeira dimensão do problema e de falta de coragem política para tomarem as medidas necessárias a tempo de evitar a imposição exterior. Finalmente, o compromisso em torno do mega fundo de resgate europeu, em troca dos planos de austeridade, acabou por transformou Grécia, Portugal e Espanha em países potencialmente resgatáveis, uma dúvida que feito subir os juros da dívida, alimentado a especulação dos mercados e reforçado as exigências dos que querem fazer aprovar a retirada do direito de voto nas instituições europeias aos países não cumpridores.Dentro de uma década, as consequências para a integração europeia já poderão ser avaliadas e deverão ter passado por um reforço considerável da governação económica. Muitos vociferam que um espaço dotado de moeda única não pode sobreviver sem política económica integrada, e a fiscalização apertada dos orçamentos nacionais está na agenda das negociações. As reacções são diversas, e pese embora muitas vozes deplorem o défice de Europa e reclamem mais Europa contra a crise, a fiscalização do orçamento por Bruxelas é um aspecto simbolicamente muito marcante no caminho para a federação, pelo que muitos governantes se pronunciaram já contra esta opção. A questão é a de saber se têm de facto opção, ou se os discursos indignados contra a limitação da soberania orçamental se dirigem exclusivamente para as audiências internas. Por muito que se oponham, o facto é que esta crise da dívida que atravessa toda a Europa colocou nas mãos da Alemanha, e da senhora Merkel, o futuro da integração do continente. Para fazer aprovar no Parlamento alemão o mega plano de resgate europeu de 750 mil milhões de euros, a chanceler alemã exigiu não só planos de austeridade credíveis aos países mediterrânicos mas, mais ainda, um verdadeiro contrato europeu de controlo das despesas dos estados que deve avançar para estabelecer maior competência comunitária sobre a política orçamental. Para dar o exemplo, a Alemanha limitou constitucionalmente a despesa pública, opção polémica e que não tem sido seguida, por razões óbvias. Por seu turno, muitos consideram que é na própria política económica da Alemanha que reside a chave para o fim da crise, designadamente no estímulo da procura interna que se traduza na redução do largo excedente da balança comercial alemã. Num momento de falta de liquidez interna de muitos países, do sector público mas também do privado, e de crescimento muito débil, a Alemanha tem a obrigação de funcionar como locomotora da Europa. Como sublinhou há poucos dias Rafael Poch no artigo publicado no La Vanguardia de Barcelona, "Merkel en busca de un éxito egoísta", a despesa pública alemã tem vindo a diminuir desde os 50% (do PIB) em 1990 aos 44% actuais (assim sendo, o défice orçamental neste momento deve-se afinal, não à despesa pública excessiva mas aos cortes sucessivos dos impostos). O retrocesso dos salários reais na Alemanha desde a adopção do euro contrasta com o aumento dos mesmos em Portugal, Espanha e Grécia ao longo do seu trajecto de integração europeia, o que tem causado desequilíbrios evidentes no seio da União. Assim, se a crise da Europa radica, em parte, no facto de Portugal, Espanha e Grécia se terem habituado a viver acima das suas possibilidades, também se deve ao facto de os alemães se terem eles mesmos obrigado a viver abaixo das suas possibilidades.Vista da 'periferia' da Europa, esta crise causa muitas perplexidades. A primeira delas tem que ver com o papel da Alemanha no seio da União, mas prolonga a sua sombra sobre a lógica das regras, normas e mecanismos de decisão em vigor no interior da mesma. Tomando o exemplo de Portugal. A integração assinada fez há pouco 25 anos, em 1985, provocou sem dúvida a modernização material do país e o aumento do nível de vida médio da sua população (a riqueza subiu dos 55% da média europeia – UE12 – em 1985 para 75% em 2000). Com a crise, porém, tornou-se mais evidente a outra cara da moeda, aquela que mostra que o tecido produtivo foi desmantelado, sobretudo no sector agrícola. Nos dias de hoje, o país importa 70% do que come, em grande parte devido à política agrícola comum (PAC) que subsidiou o abandono das terras agrícolas e estimulou a importação dos grandes beneficiários da PAC, a França sobretudo. A integração numa união aduaneira acelerou a importação das máquinas alemãs que, de acordo com a lógica da livre competição do mercado, foi tida como peça fundamental da paz democrática europeia. Acresce que a moeda única retirou competitividade à economia portuguesa – pela subida dos preços, pelo alto valor da cotação do euro e pela fim da soberania cambial – restando ao país o endividamento para financiar a despesa. No sector privado, a lógica foi a mesma. A baixa constante das taxas de juro, desde meados dos anos 1990 até ao nível histórico de 1% actual, foi acompanhada de um política agressiva das instituições bancárias que concederam crédito em cima de crédito – para comprar casa, carro, electrodomésticos, férias, roupa – sem exigirem muitas garantias. A ordem foi a de comprar, os produtos alemães que construíram o excedente comercial da Alemanha e produziram o excedente financeiro aplicado na compra da dívida da Grécia, Espanha e Portugal, por exemplo. Para muitos, a exposição dos investidores alemães à dívida deste países foi mesmo o factor que determinou a resposta alemã à crise da dívida do Sul e o seu compromisso relutante com o mega fundo de resgate europeu. Como escreveu o conhecido historiador e publicista português Vasco Pulido Valente, num artigo do Público de Lisboa, depois de vinte anos de fotos de família e de cegarrega da União, o que é real são as grandes potências, e os seus interesses, sempre prontos a pôr na ordem os malcomportados e desordeiros do Sul que gastam mais do que produzem e não se sabem governar. As visões cínicas do fenómeno europeu e da integração vão certamente crescer, alimentadas pela crise; e o pior é que alguma verdade há por detrás delas.*Doctor en Relaciones Internacionales. Profesor del Instituto de Ciencias Sociales y Políticas, Universidad Técnica de Lisboa.
BASE
A trajectória da crise, nesta parte da Europa de onde escrevo, está a deixar um rasto de inquietação e tempestuosidade que nada faria crer quando foram conhecidas as primeiras previsões do crescimento económico para o ano de 2010. Com os principais índices económicos a recuperar melhor do que o previsto, a Europa parecia preparada para enfrentar uma nova era, sobretudo depois do alívio que representou a resolução do imbróglio constitucional checo e a consequente entrada em vigor do Tratado de Lisboa. Assim, em Dezembro de 2009 todos os índices, da produção industrial ao crescimento, à inflação e à consolidação dos activos das instituições financeiras, pareciam prognosticar o regresso ao caminho seguro da produção de riqueza. Para lá da zona euro, as dificuldades financeiras na Europa Central ao longo de 2009 pareciam ter deixado de estar na primeira linha das ansiedades dos mercados, com o FMI a conceder avultados empréstimos e condições draconianas a países como a Roménia ou a Hungria, mas a fazer com que o receio de default da dívida nestes países tivesse abrandado sensivelmente e deixado de pressionar as respectivas economias. Contudo, e quase ao mesmo tempo que os dirigentes políticos se apressavam a declarar o fim da crise, as suas consequências mais profundas estavam ainda para vir à tona. A primeira delas foi a destruição de emprego, com os números do desemprego a crescerem até níveis inusitados. Um pouco por toda a Europa, o desemprego acabou por chegar perto dos 10%, e até a ultrapassar este patamar psicológico, como no caso de Espanha que o poderá até duplicar. Pior que isso, as previsões apontam para o agravamento do desemprego ainda ao longo deste ano 2010, o que atira para a completa inutilidade as apressadas declarações do fim da crise. Os economistas explicam esta dificuldade de recuperação do emprego depois de uma crise deste tipo, mas as dificuldades dos governos em gerirem as suas consequências sociais são notárias e potencialmente explosivas para a paz social. Em segundo lugar, as dificuldades de tesouraria das pequenas e médias empresas prometem manter-se, pelo que vários governos anunciaram que não retirariam os incentivos financeiros que aprovaram nos últimos dois anos na estratégia de combate à crise. Em terceiro lugar, a intervenção dos governos para obviar os impactos mais profundos da crise sobre as pessoas e as empresas arrasou o exercício orçamental de 2009 na generalidade dos estados europeus e fez agravar a dívida pública – deixando-os mais longe que nunca do cumprimento das metas estabelecidas pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), um compromisso que obriga todos os membros da zona euro. Na zona euro, as dificuldades atingiram sobretudo os países mais periféricos e com dificuldades estruturais ao nível da competitividade e criação de riqueza, quer dizer, Portugal, Espanha, Grécia e, de algum modo, também a Itália (o grupo de países que no Reino Unido é muitas vezes designado de 'PIGS'), levando alguns a expressar as maiores preocupações quanto ao impacto da moeda única num espaço que não dispõe de política económica nem de política fiscal comum. Em Janeiro, a Grécia tornou-se no alvo preferencial das análises ao conhecer-se que atingiu, em 2009, um défice orçamental de 12,7% do PIB e uma dívida de mais de 120%, fazendo repicar todas as campainhas de alarme relativamente à estabilidade da zona euro e ressuscitando as dúvidas dos mercados financeiros quanto à capacidade de pagamento da dívida. A este propósito, as agências de notação financeira como a Moody's, a Fitch e a Standard & Poor's aumentaram o grau de risco da dívida grega e provocaram o aumento das taxas de juro da dívida pública e, por consequência, o juro dos empréstimos públicos e privados. De um dia para o outro, a publicitação dos números do défice orçamental e da dívida pública provocou as ansiedades do mercado, e consequentemente, também fez voltar sobre os países mediterrânicos as expectativas dos especuladores quanto ao incumprimento generalizado. As preocupações relativamente à Grécia provocaram o voltar das atenções sobre países como Portugal e a Espanha, também com pesadas dificuldades provocadas pela crise e pelo apoio ao sector financeiro nacional. O défice português atingiu em, 2009, os 9,3% do PIB (depois de uma previsão de 8,3%, apresentada pelo governo em Outubro passado), com a dívida a chegar aos 76% e as dificuldades fizeram relembrar o histórico espanhol de incumprimento da dívida. Para 2009, o défice orçamental em Espanha atingiu 11,4% do PIB, com a dívida pública a chegar aos 68%. Já em Itália, o défice atingiu 9,3%, enquanto a dívida escalou até aos 114% do PIB. É preciso dizer que a trajectória destes países nos últimos anos não é a mesma, e que a tentativa de os agrupar é muito contestável. A tendência para o aumento da dívida pública é comum a estes países, mas o seu peso relativo difere de caso para caso. A dívida espanhola desceu dos 66% no final do século para os 36% antes da crise; a dívida portuguesa vinha em crescimento, dos 50% no ano 2000 para os 66% antes da crise. Quanto à Itália, a dívida historicamente alta manteve-se sempre acima dos 100% do PIB e variando entre os 118% de 1997 e os 103% antes da crise. No caso da Grécia, os valores da dívida mantiveram-se perto dos 100% do PIB durante este período. A consolidação orçamental também tem seguido caminhos bastante diferentes nos últimos anos. A Espanha vem de vários anos de super-havit, com 2% em 2006 e 1,9% em 2007, mas apresentando já em 2008 um défice de 4,1% do PIB. Quanto à Grécia, o exercício de 2008 apresentava um défice de 7,7%, sendo que os valores dos anos anteriores superaram sempre em muito os 3% estabelecidos pelo PEC. Quanto a Portugal, e após um descontrolo das contas no exercício de 2005, as medidas de austeridade implementadas pelo governo socialista fizeram cair o défice para uns históricos 2,6% em 2007 e 2,7% em 2008. No caso da Itália, o défice público estava abaixo dos 3% do PIB até 2003, ano em que superou este valor, mantendo-se entre os 3,5% e os 4,3% até 2006. Em 2007, o défice tinha baixado para 1,5%, subindo no ano seguinte, fruto da crise, para os 2,7% do PIB.O controlo da Comissão Europeia sobre as contas dos estados-membros (sobretudo sobre as contas dos da zona euro) e o inevitável cumprimento do PEC foi relaxado durante a crise mas, logo que os primeiros sinais de retoma apareceram, foi estabelecida uma nova meta para impor o rigor orçamental. Assim, 2013 é agora o novo prazo para trazer as contas públicas de volta aos níveis estabelecidos pelo PEC, sendo que, até lá, a Comissão Europeia se prepara para exercer uma função fiscalizadora que provavelmente nunca até agora foi tão visível nem tão potencialmente punitiva. De acordo as ansiedades de alguns sectores europeus, o descalabro das contas públicas à maneira grega poderia mesmo pôr em causa a estabilidade da união monetária europeia, pelo que já surgiram avisos velados de que, a manterem-se as dificuldades, países como a Grécia, Espanha e Portugal poderiam vir a ter que deixar o euro. Em declarações ao jornal alemão Die Welt, o Ministro grego das Finanças Georges Papaconstantinou negou categoricamente tais informações e reiterou a confiança na capacidade do seu país para equilibrar as contas públicas sem a ajuda financeira externa. A verdade é que as novas emissões da dívida pública destes países não apresentaram dificuldades e surgiram mesmo notícias do interesse da China e de investidores asiáticos por essas operações, o que avoluma as suspeitas de movimentos especulativos por detrás dos sobressaltos dos mercados financeiros. As declarações são contraditórias, facto que só ajuda ao nervosismo dos mercados e aguça o apetite dos especuladores. A este propósito, lembro aqui as declarações incendiárias de Joaquín Almunia, ainda enquanto Comissário europeu para os assuntos económicos e financeiros (na Comissão Barroso II assumiu a pasta da concorrência). Numa conferência de imprensa no dia 4 de Fevereiro, por ocasião da análise, por parte da Comissão, do Programa de Estabilidade e Crescimento apresentado pela Grécia, Almunia fez questão de associar as dificuldades deste país às de outros países, e referiu Portugal e a Espanha. Nos dias seguintes, as bolsas europeias, em especial Madrid e Lisboa, caíam a pique, com as piores perdas desde Novembro de 2008. Em dois dias, a bolsa lisboeta perdeu 16 mil milhões de euros e as obrigações do tesouro (OT) portuguesas entraram em acentuada queda, elevando o diferencial entre as yields da dívida portuguesa face à alemã para 166 pontos base, o spread mais elevado desde Março de 2009. No prazo de cinco anos, a yield da OT portuguesa subiu 4 pontos base, na dívida espanhola subiu 2 pontos base e na grega avançou 16 pontos base. No que toca aos credit default swaps(CDS), seguros que permitem aos investidores protegerem-se contra o incumprimento da dívida, há também a registar um novo máximo, com uma subida de 15 pontos base para 242 pontos base, de acordo com a Bloomberg que cita dados da CMA Datavision. Este é o valor mais elevado desde que estes títulos são transaccionados no mercado e reflecte o agravamento da desconfiança dos investidores face às contas públicas portuguesas. OS CDS de Espanha subiram 4,5 pontos base para 171 pontos base, atingindo também um recorde, enquanto na Grécia atingiram um máximo histórico de 428 pontos base no dia 5, fixando-se depois nos 420 pontos. Os juros da dívida pública dispararam, o que vai tornar ainda mais difícil o financiamento das empresas.A reacção dos ministros das finanças de Portugal e Espanha não se fizeram esperar. Teixeira dos Santos e Elena Salgado reagiram prontamente contra as declarações do Comissário Almunia, procurando acalmar os mercados e mostrar que a situação grega não tem paralelo nas economias ibéricas, mas o dano estava feito. As críticas a Almunia foram-se multiplicando, com os analistas estupefactos perante a forma como o Comissário geriu as suas declarações. De facto, a conferência de imprensa referia-se ao Programa de Estabilidade e Crescimento apresentado pela Grécia para recompor as suas contas públicas. Como tal, deveria ter servido para acalmar os mercados e não para levantar novas dúvidas sobre outros países. Perante o descalabro das bolsas, o próprio Presidente da República de Portugal, Aníbal Cavaco Silva, fez questão de recorrer ao estatuto de Professor Catedrático de Economia para lembrar que a situação portuguesa é muito diferente da da grega. A generalidade dos analistas sublinhou que se tratava de mera especulação dos mercados, já que nenhuma nova debilidade tinha sido conhecida no dia 4 de Fevereiro que justificasse a instabilidade nas bolsas. No meio da turbulência, a agência de notação financeira Fitch reafirmou a semelhança das debilidades que caracterizam as economias grega, portuguesa e espanhola, mas considerou que não existe perigo de contágio para as economias mais fortes da zona euro. Deste modo, as atenções viraram-se definitivamente para Portugal e Espanha para a capacidade dos respectivos governos de proceder ao saneamento das contas públicas, já não até 2013 mas no imediato. Assim, o Programa de Estabilidade e Crescimento que ditos governos apresentaram em Bruxelas, e que foi escrutinado meticulosamente pela Comissão Europeia, foi visto como o momento decisivo para recuperar a credibilidade e até o favor dos mercados. Com um grau de endividamento público e privado nunca antes atingido, ambos governos viram-se obrigados a tomar medidas extremas e a prescindir de algumas das bandeiras de campanha para cortar a despesa pública. Ainda assim, e no meio da suspeita generalizada de que os dois países não seriam capazes de levar a cabo as reformas necessárias e de que os seus problemas poderiam arrastar a moeda única para o abismo, a cimeira europeia convocada para o primeiro fim-de-semana de Maio marcou um novo estádio político no ataque à crise. Passadas as eleições regionais, e perante pressões fortíssimas de Nicolas Sarkozy, a Alemanha de Merckel aceitou aprovar um plano de estabilização financeira do euro, com a concomitante ajuda a países em dificuldade financeira, facto que obrigou os governantes de Portugal e Espanha a aceitar medidas mais pesadas para controlar os respectivos défices. Depois da cimeira, Sócrates e Zapatero chegaram a Lisboa e Madrid como chefes de governo que haviam perdido uma parte importante da soberania financeira, a quem tinham sido impostas condições draconianas em troca da promessa de solidariedade do eurogrupo. É sabido que o próprio Obama contactou Zapatero para lhe tornar clara a gravidade da situação. Por seu lado, Sócrates e Zapatero apresentariam as novas medidas de austeridade às audiências nacionais como o contributo de Portugal e Espanha para a salvação do euro. A resistência dos governantes portugueses e espanhóis em admitir a gravidade da situação tem sido apontada como o maior entrave para a definição de uma estratégia credível de luta contra a crise. Aproveitando a pressão da cimeira a Portugal e Espanha, a generalidade dos países do euro adoptou um pacote de medidas duríssimas que passou pela limitação, às vezes com recurso a leis constitucionais, como na Alemanha, da despesa pública. A mudança de governo no Reino Unido provocou finalmente o reconhecimento do seu próprio problema e já se fala abertamente do país como um PIG. Tal como ficou decidido na Grécia, e na Irlanda antes dela, até 2013 a vida dos europeus vai ser marcada pelo aumento de impostos, pelo recorte de salários e pelo recuo da prestação de serviços pelo estado. Os salários da função pública serão congelados nos próximos anos ou, como já aconteceu na Irlanda, poderão mesmo baixar (o governo irlandês aprovou um corte de 5% nos salários mais baixos e 15% nos mais altos). A idade mínima para a reforma tenderá a subir, para ajudar na sustentabilidade da segurança social, e algumas regalias dos reformados serão inevitavelmente cortadas. Em Portugal, o investimento público, arma de José Sócrates na luta contra a crise, continuará a cair e o governo português já prescindir de algumas bandeiras eleitorais como a ajuda aos desempregados, a construção de novas auto-estradas, do novo aeroporto de Lisboa ou até de uma parte do programa de alta velocidade ferroviária. Quanto à subida dos impostos, há que lembrar que a consolidação orçamental conseguida por Sócrates entre 2005 e 2008 se deveu, em grande parte, à subida dos impostos, directos e indirectos, com o IVA máximo a atingir os 21%, depois baixando para os 20% em ano eleitoral. Depois da pressão europeia, foi já aprovada no Parlamento a subida da taxa de IVA para todas as categorias de produtos, também para os básicos, e o agravamento excepcional do imposto sobre o rendimento, com carácter retroactivo sobre todo o ano de 2010, e pelo menos até ao final de 2011. Com políticas recessivas desta natureza, a crise económica promete agravar-se na Europa e, neste contexto, muito pedem o reforço soberano do controlo da Comissão europeia sobre os orçamentos nacionais e o estabelecimento de um verdadeiro governo económico na União Europeia. Com ou sem maioria absoluta nos Parlamentos, os governos dos países periféricos encontram-se debilitados politicamente devido às medidas que já estão a tomar para pôr ordem nas contas públicas e dificilmente sobreviverão à contestação social. As manifestações contra os cortes salariais sucedem-se na Grécia e já provocaram o caos nas ruas de Atenas e até a morte de inocentes; o descalabro dos conservadores nas últimas eleições já foi a consequência do mal-estar social que se vive no país. E a seguir ao descalabro grego já se anuncia o descalabro húngaro. Em Espanha, a popularidade de Rodríguez Zapatero caiu a pique, os sócios nacionalistas abandonam o barco (a Espanha é a única grande economia europeia que ainda não saiu nem sairá tão depressa da recessão) e a reforma das leis laborais promete desatar todos os conflitos. Ao mesmo tempo, só um terço da população quer que Zapatero volte a apresentar-se a eleições e a oposição exige com cada vez mais frequência a antecipação das mesmas. Em muitos dos países periféricos da Europa, e não só, a crise financeira e económica está agora a dar lugar a uma crise orçamental e política que promete retardar a recuperação e aumentar, nos próximos anos, a instabilidade social. Ao contrário do que aconteceu nos anos 1980, o bode expiatório não será o FMI, mas poderá vir a sê-lo a própria União Europeia que em trinta anos substituiu o Fundo, para a Europa mediterrânica e oriental como autoridade supranacional inquestionável de governação económica, financeira e monetária.*Doctor en Relaciones Internacionales. Profesor del Instituto de Ciencias Sociales y Políticas, Universidad Técnica de Lisboa. Profesor Invitado del Instituto de Estudios Políticos, Universidad Católica Portuguesa
BASE
É hoje banal dizer que a queda do muro de Berlim marcou o início de uma nova era, não só nas relações internacionais, mas também no estudo académico da disciplina que tem o mesmo nome – Relações Internacionais. Testemunhei ambos inícios faz agora vinte anos, em primeira mão, e as palavras que se seguem são uma genealogia dessas origens.Tinha dezoito anos quando o muro caiu e encontrava-me à espera de entrar na Universidade. Enquanto a Europa acolhia com perplexidade e júbilo a mudança política, o ensino superior em Portugal vivia momentos conturbados e o ano lectivo só começaria no início de Janeiro seguinte. Visto à distância, o atraso parece-me agora providencial. Permitiu-me seguir pela televisão – com todo o tempo do mundo, e sem ter que me dedicar às sebentas que já me esperavam no palácio Burnay da rua da Junqueira – esses momentos libertários de uma Europa, e de um mundo, que desconhecia por completo.Lembro-me dessa primeira aula com o professor Adriano Moreira, no palácio Burnay, sob o signo da queda do muro. Os tempos desafiavam a compreensão do mundo, lembro-me que repetiu, e em seguida distribuiu o seu último livro por todos os alunos da turma para demonstrar – foram estas as suas palavras – que bibliotecas inteiras haviam de repente ficado obsoletas com os acontecimentos dos meses anteriores. Lembro-me dessa aula com a gratidão que se sempre é devida a quem abre caminhos e nos ajuda a construir uma visão própria do mundo. Lembro-me dela com o brilho de que dispõem apenas as descobertas essenciais e as coisas excitantes da vida, a origem das ideias mais caras e que nos acompanham até ao fim. Foi nessas aulas que descobri Václav Havel, que comecei a perceber o sentido da política e que intuí a importância da relação entre identidade, responsabilidade e autenticidade. Escrevi-lhe uma carta em 2001, quando já era presidente da República Checa (e que não sei se alguma vez chegou a ler), a acompanhar um exemplar da minha tese de mestrado., um texto a que pus o título de "Dear Mr Havel" (título e conteúdo numa alusão explícita à carta aberta que ele próprio escrevera, em 1975, ao presidente comunista da Checoslováquia): "[p]assaram vinte e seis anos, vivemos ambos em sociedades ocidentais, democráticas, liberais e que muitos acreditam ser o fim da história. E no entanto, a mesma falta de autenticidade, a mesma dificuldade de comunicação, a mesma auto-complacência por parte das sociedades e dos governantes, o mesmo esquecimento de que a responsabilidade é o eixo fundamental da identidade humana. E a mesma satisfação com uma normalidade que sistematicamente exclui, que produz um passivo pesado e que serve os interesses dos poderosos, ignorando as vítimas e os sem-poder da era global. Enfim, a mesma e crescente dificuldade de concentração para compreender o mundo real como problema filosófico."Passaram vinte anos desde a queda do muro de Berlim e o início da reconciliação europeia. Os antigos satélites soviéticos são hoje membros de pleno direito da UE e um outro checo, Václav Klaus, acaba de levantar o último obstáculo – ele próprio e a sua assinatura – à entrada em vigor do tratado de Lisboa. E no entanto, a mesma necessidade de recordar a responsabilidade de Europa na criação de um mundo mais inclusivo, sustentável e equitativo. A mesma necessidade de recordar o momento em que muro caiu, ou foi derrubado – como sublinha alguns – para insistir no valor fundacional que é a construção de pontes na história da Europa. Hoje tenho trinta e oito anos e sinto-me herdeiro dessa Europa que derrubou o muro de Berlim, não só para se reconciliar mas, sobretudo, para transformar a política das relações internacionais. Sinto-me herdeiro desses homens e mulheres que, no chamado Leste europeu, sofreram o acosso de um dos projectos totalizantes da modernidade e se opuseram a ele com o poder da palavra, o poder dos que não têm poder. Sempre recordando, como fez questão de escrever Havel, que aquele era apenas o espelho convexo, uma imagem distorcida, porém evocadora, da sociedade ocidental a caminho do mesmo desastre (que Václav Bělohradský denominou escatologia da impessoalidade), e que só a auto-complacência impede de compreender as razões. Nestes anos, tive o privilégio de ler os manifestos, os ensaios políticos, as peças de teatro, as cartas escritas a partir da prisão por essa geração conhecida como 'dissidente'. À distância de duas décadas, tive o privilégio de seguir os passos e as ideias de muitos daqueles que deram a vida por uma Europa unificada e sem muros. Como Jan Patočka, o filósofo checo da fenomenologia, discípulo de Husserl e porta-voz da iniciativa cívica Carta 77, que morreu após ter sido submetido a um interrogatório policial. Essas gerações de resistentes em nome da Europa continuam a ser grandemente desconhecidos no resto da Europa e do mundo, por muito que os prémios literários e as honras políticas se vão encarregando de difundir o reconhecimento merecido. É o caso de Hertha Müller, a romena de língua alemã que recebeu o prémio Nobel da literatura 2009, Győrgy Konrád, Tadeusz Mazowiecki, Imre Kertész, Czesław Miłosz ou Doina Cornea. Mas tive o privilégio de viajar por essa outra Europa, logo a seguir a ter entrado na Universidade, e cruzar-me com as faces anónimas dos que, com ansiedade e desespero, descobriam o outro lado da mudança política e que a transição para uma sociedade aberta não era coisa nem fácil nem imediata. Fui várias vezes a Praga e a São Petersburgo nesses anos noventa, e fui testemunha do bom e do menos bom que trouxeram os novos ares políticos. Da Praga cinzenta e despida de gente à Praga colorida e formigueiro de turistas; da imensa aldeia de Leninegrado, de filas a perder de vista para comprar pão e botões, à São Petersburgo cosmopolita e das lojas de luxo. Dessa primeira visita à cidade que foi de Pedro, depois de Lenine, e outra vez de Pedro recordo com pudor a ida a uma aula de espanhol, na Faculdade de Pedagogia de Leninegrado. Lembro-me do desencanto da professora, russa, que depois de me pedir que olhasse em redor, para roupas e móveis dentro da sala de aula, concluía que tudo tinha parado no tempo, algures nos anos 1960. O desencanto dessa professora não mais o pude esquecer – tenho pena de não ter retido o seu nome – e misturei-o com a opressão da alma e a ansiedade que senti, nesses dias do fim da URSS, por causa do céu baixo e de chumbo. A noite perpétua desses dias de Dezembro era uma metáfora que só mais tarde compreendi e relacionei directamente com as palavras de George Orwell em 1984. As imagens do muro em 1989 sucedem-se em todas as televisões, neste domingo oito de Novembro de 2009, enquanto procuro escrever o meu texto. O muro derrubado, perfurado, pintalgado, atravessado pela chusma exultante, inútil na função que as autoridades da República Democrática Alemã que haviam atribuído em 1961. E as mesmas perguntas assaltam-me: o muro de Berlim caiu ou foi derrubado? Deve dizer-se a 'queda' ou o 'derrube' do muro? A palavra muro deve escrever-se com 'm' maiúsculo ou minúsculo? Pormenores, provavelmente, mas não posso deixar de me confrontar com eles se quero terminar este texto. E no entanto, muito se esconde por detrás do que parecem simples pormenores, aspectos cruciais da teoria social e da interpretação da história. Estas questões não são despiciendas, e representam o cerne da discussão sobre as causas – ou melhor dizendo, sobre as razões – do fim dos regimes comunistas, da coesão do bloco soviético e da ordem internacional bipolar. Tudo isto foi o resultado da acção dos actores externos, da sublevação dos povos, ou da acção de actores externos, da competição militar, económica e tecnológica dos Estados Unidos e seus aliados ocidentais? A sublevação dos povos do chamado Leste europeu derrubou, de facto, os regimes comunistas, ou estes caíram pelo desgaste de décadas da sua legitimidade e pela incapacidade de cumprir o projecto? Queda ou derrube? Provavelmente as duas coisas, a acção endógena e a influência exógena, agencialidade e estrutura. Finalmente, muro com maiúscula ou minúscula? A primeira solução é a dos que entendem que a sua importância na história (ou História?) merece letra capital; a segunda é a da simplicidade da escrita e a que não deixa no esquecimento o passivo dos mortos caídos na tentativa de o atravessar. Um muro é sempre um muro, ainda que esteja em Berlim e tenha mudado o curso da história da Europa e do mundo.A recordação dos vinte anos passados sobre a queda, ou o derrube, do muro de Berlim coincide com a entrada em vigor do tratado de Lisboa e um novo passo na integração europeia. A coincidência é mais que simbólica e obriga a cumprir as expectativas criadas a 9 de Novembro de 1989. Após anos de indecisão e contínuos reveses, acabaram os pretextos para o défice de Europa, tanto no plano interno como no exercício do poder normativo para a produção de governação global. Assim queiram e saibam os dirigentes dos vinte e sete, e os que agora serão chamados a desempenhar os novos cargos europeus criados pelo tratado reformador. *Doctor en Relaciones Internacionales. Profesor del Instituto de Ciencias Sociales y Políticas, Universidad Técnica de Lisboa. Profesor Invitado del Instituto de Estudios Políticos, Universidad Católica Portuguesa.
BASE
O actual sistema partidário português é herdeiro directo da Revolução de Abril de 1974, que instituiu a Segunda República, mas as suas raízes remontam à organização política da resistência ao regime anterior, uma ditadura que se proclamou como Estado Novo, e que durou entre 1926 e 1974. Dos cinco partidos com representação na Assembleia da República – o Parlamento português – quatro deles foram criados antes da revolução ou nos meses que se seguiram a Abril de 1974. Apenas um deles pode ser considerado como outsider num sistema partidário consolidado, surgindo no final da década de 1990, a partir da fusão de pequenos partidos, e mais como movimento do que como partido tradicional.O actual Partido Comunista (PCP), presente na Assembleia da República, foi fundado em 1921, durante a vigência da Primeira República (1910-1926) – e ainda antes do golpe de estado que deu origem ao Estado Novo, tornando-se na principal organização de resistência à ditadura até à década de 1970. O Partido Socialista (PS), na sua forma actual, foi fundado em 1973, na República Federal da Alemanha, apoiado directamente pelos alemães do SPD e fundado na tradição social-democrata europeia. O actual Partido Social-Democrata (PSD) foi fundado já depois da Revolução, em Maio de 1974, com o nome de Partido Popular Democrata (PPD). A inclinação esquerdista da Revolução e, por conseguinte, a necessidade de reclamar uma parte na herança da luta contra a ditadura de direita fez com que a dimensão social da política surgisse nos programas de todos os partidos. Assim, rapidamente o PPD se tornou PPD-PSD. O Centro Democrático e Social (CDS) foi fundado em Julho de 1974, centrado na tradição democrata-cristã, mas o estatuto abria tanto ao centro-esquerda como ao centro-direita, reflectindo a dificuldade do aparecimento de partidos de direita no Portugal pós-1974. A partir do fim da década de 1990, o CDS deixou definitivamente a pretensão de ser um partido de charneira e assumiu a sua vocação de direita, juntando à sigla CDS a fórmula Partido Popular e surgindo, a partir de então, como CDS-PP. Finalmente, o Bloco de Esquerda (BE) surge em 1999 da aglutinação de pequenos partidos da esquerda revolucionária e com mínima expressão, entre eles a UDP (marxistas), o PSR (trotskistas) e a Política XXI (pós-comunistas). A estes, foram-se juntando cidadãos sem filiação partidária anterior e outros movimentos de opinião, designadamente sindicalistas, católicos, ambientalistas e LGBT. Os três partidos fundadores do BE extinguiram-se entretanto e transformaram-se legalmente em associações de reflexão política. O BE consegue eleger os seus primeiros dois deputados à Assembleia da República nas eleições legislativas de 1999 e o seu primeiro deputado europeu nas eleições de 2004, efectuando assim uma transformação do sistema partidário e dos equilíbrios políticos no Parlamento. Até 1987, a formação e a estabilidade dos governos em Portugal estiveram muito condicionadas pela dificuldade de obtenção de claras maiorias parlamentares e pelo exercício de poder significativo por parte do Presidente da República. É preciso compreender que o sistema político português não é parlamentarista puro; é antes considerado semi-parlamentar, ainda que uma série de revisões constitucionais efectuadas nas décadas de 1980 e 1990 tenha recortado em muito a margem de manobra do Presidente. O sistema eleitoral proporcional, apurado através do método de Hondt e baseado em círculos eleitorais regionais que correspondem aos distritos administrativos, sempre tornou difícil a obtenção de uma maioria absoluta no Parlamento. Nos primeiros anos após a Revolução, a fragmentação do sistema partidário e a dispersão dos votos exigiu a formação de governos de iniciativa presidencial, liderados por personalidades de prestígio e da confiança do Presidente da República mas gozando de fraco apoio parlamentar. Posteriormente e até 1987, PS e PSD revezaram-se na constituição de governos minoritários ou de coligação com o CDS, e por uma vez governaram juntos (1983-1985) naquilo que ficou conhecido como governo de bloco central. Em 1987, o PSD obteve a primeira maioria absoluta que revalidou nas eleições legislativas de 1991. Em 1995 e em 1999, o PS ganhou as eleições com maioria simples mas com um número de deputados no Parlamento muito próximo da maioria absoluta, o que lhe permitiu governar com estabilidade e levar até ao fim a primeira das duas legislaturas. Para isso, o governo de António Guterres estabeleceu acordos de incidência restrita com alguns deputados do PSD e do CDS, do arquipélago da Madeira e do Minho, respectivamente, com o objectivo de ver aprovados os orçamentos anuais apresentados. A nova década assistiu a uma nova inversão da tendência – constituição de maiorias absolutas que duram toda a legislatura – com a demissão de António Guterres de chefe do governo e de Secretário-Geral do PS, no seguimento da hecatombe do partido nas eleições municipais de Dezembro de 2001. Os resultados das eleições legislativas antecipadas (2002), paras as quais o PS teve de eleger, a toda a pressa, um novo Secretário-Geral, fizeram reeditar a coligação governativa dos anos 1980 entre PSD, o partido mais votado, e o CDS. O governo foi encabeçado por Durão Barroso, presidente do PSD, quem passados dois anos (2004) o haveria de abandonar para ocupar o lugar de Presidente da Comissão Europeia. Esta ocasião trouxe de novo o papel, e os poderes, do Presidente da República ao centro do sistema político português, uma vez que a solução para a saída de Durão Barroso teria que contar com o seu aval político. Dissolução da câmara e convocação de novas eleições, governo de iniciativa presidencial com a mesma maioria parlamentar ou substituição do Primeiro-Ministro cessante pelo novo líder do PSD e constituição de um novo governo, a solução passou pela decisão política do Presidente Jorge Sampaio. Entre as várias opções, este decidiu-se por dar posse a um novo governo encabeçado por Santana Lopes, o novo líder do PSD. Pese embora tenha empossado o novo governo do PSD sem recurso a eleições antecipadas, Jorge Sampaio prometeu manter a acção do novo governo debaixo de atenção especial. Na sequência de uma série de incidentes que envolveram a quebra da confiança política no seio do governo de Santana Lopes e pressões sobre a televisão pública por parte do ministro da tutela, o Presidente Jorge Sampaio resolveu utilizar o poder mais extremo que lhe é conferido pela Constituição, apelidado de bomba atómica, dissolvendo a Assembleia da República e convocando eleições legislativas antecipadas (2005). Nelas, Santana Lopes pelo PSD defrontou José Sócrates, pelo PS, e o resultado do confronto agravou a deriva do sistema político português, já evidenciada desde finais dos anos 1980 com os governos de Cavaco Silva, para uma espécie de presidencialismo do Primeiro-Ministro. A vitória do PS nas legislativas de 2005 significou o regresso aos governos que contam com apoio parlamentar absoluto, o que reforçou inevitavelmente o perfil e a intervenção do chefe do governo como actor fulcral e decisivo da governação e deixou para segundo plano a necessidade de encontrar compromissos com as oposições. Entre 2005 e 2009, José Sócrates fez questão de aparecer como o campeão da reforma e modernização do Estado, sem compromissos com os sectores sociais afectados nem com os interesses instalados. A maioria parlamentar absoluta não evitou, porém, a erosão da sua imagem junto da opinião pública e os efeitos da crise global sobre o desemprego acabaram por o obrigar a recuar, na saúde e no ensino, designadamente, para tentar salvar a reeleição em 2009. O confronto com as populações, a propósito da reforma do sistema de saúde, e com os professores do ensino secundário, a propósito da implementação de um regime de avaliação, passaram factura e em muito contribuíram para a perda da maioria absoluta nas recentes eleições legislativas. O corrente ano de 2009 foi ano de triplo escrutínio para os partidos políticos e, mais directa ou indirectamente, para o próprio governo. Em Junho celebraram-se as eleições para o Parlamento Europeu, em Setembro as eleições legislativas e, no passado Domingo, as eleições municipais – ou autárquicas, como se lhes chama em Portugal. Em fim de legislatura, todos as eleições assumem, de uma forma ou outra, o carácter de escrutínio sobre a actividade governativa, se bem que ao fim de 35 anos de democracia, o eleitorado português tenha já demonstrado maturidade suficiente para separar os actos eleitorais e o que está em jogo em cada um deles. Apesar de tudo, as eleições europeias continuam a ser as que gozam de menor prestígio junto dos eleitores, e com isto quero dizer que assim se justifica a maior taxa de abstenção – o voto não é obrigatório em Portugal – e a sua utilização estratégica como instrumento de avaliação do governo. É o momento político, por exemplo, que o eleitorado costuma aproveitar para mostrar um 'cartão amarelo' ao governo, ou seja, para o advertir do descontentamento provocado pelas opções da governação. O mesmo aconteceu este ano. O descontentamento face a algumas opções do governo PS teve expressão na derrota eleitoral nas eleições europeias. No contexto de uma abstenção recorde – 63% – o PSD venceu, tendo à sua frente a primeira líder mulher da sua história – Manuela Ferreira Leite – e obteve 32% dos votos, ou seja, 8 mandatos no Parlamento Europeu. O PS foi sancionado e obteve apenas 26% dos votos e 7 mandatos. O BE obteve 3 mandatos relativos a quase 11% dos votos, a coligação entre comunistas e verdes (CDU) obteve 2 mandatos com 10,5%, enquanto o CDS-PP obteve outros 2 mandatos com 8% dos votos. Dito isto, PSD e CDS-PP fazem parte do Partido Popular Europeu (EPP), o PS está filiado no novo grupo da Aliança Progressista de Socialistas e Democratas (S&D), enquanto o BE, os comunistas e os verdes integram o grupo confederal da Esquerda Unitária Europeia e Esquerda Nórdica Verde. A campanha para as eleições legislativas decorreu num ambiente tenso. O PSD, motivado pelos resultados das europeias e pelas sondagens que encurtavam a distância para o PS, contestou as grandes obras públicas que são a bandeira do governo – novo aeroporto e comboio de alta velocidade – com base no elevado endividamento público do país e apresentou um plano alternativo para reanimar a economia, assente no apoio adicional às pequenas e médias empresas como criadoras de riqueza e emprego. O PS, para além das grandes obras públicas, apresentou-se como o campeão do estado social de bem-estar e procurou colar o PSD, e a sua líder em especial, às políticas neoliberais e ao conservadorismo dos costumes. A estratégia deu resultado, uma vez que a vantagem das eleições europeias foi anulada e o PS alcançou a vitória. Contudo, o confronto com diferentes sectores sociais, e em especial com os professores, bem como o aumento acentuado do desemprego (9%) nos últimos meses deitaram a perder a maioria absoluta. Num parlamento com 230 deputados, o PS obteve 36,5% dos votos e 97 mandatos (perdeu a maioria e 24 mandatos face a 2005), enquanto o PSD obteve 29% dos votos e 81 mandatos (ganhou menos de 1% de votos mas 6 mandatos face a 2005). Nas franjas do grande centro político, todos os partidos representados na Assembleia da República viram a sua representação aumentar. O CDS-PP recuperou o terceiro lugar com 10,4% dos votos e 21 mandatos, o BE obteve 9,8% dos votos e 16 mandatos, enquanto a coligação entre comunistas e verdes (CDU) obteve 7,9% dos votos e 15 mandatos. Por fim, no último Domingo foi dia de eleições municipais. O PSD era e continuou a ser o partido mais representado nas autarquias locais, num país que conta com 308 municípios. Contudo, perdeu um número significativo (21), e com a liderança em 140 municípios (em alguns, em coligação com o CDS-PP) viu o PS chegar-lhe perto. O PS passou dos 110 municípios que dirigia desde 2005 aos 131 que venceu no Domingo, e o seu Secretário-Geral proclamou-se vencedor das eleições autárquicas por ter obtido um número superior de votos (37,6% face aos 32,7% dos PSD). É verdade que as eleições autárquicas têm as suas lógicas bem locais, pouco contaminadas pelas lógicas nacionais, mas a verdade é que a liderança de Manuela Ferreira Leite se encontra ainda mais debilitada e está já aberto o processo de sucessão no seio do PSD. Quanto às outras forças políticas, o PCP mantém a implantação local de que dispões no sul de Portugal, ainda que tenha perdido alguns municípios para o PS e para listas de cidadãos independentes que, de acordo com a lei eleitoral em vigor, podem concorrer ao governo dos municípios. O CDS-PP mantém-se na liderança do único município que detinha desde 2005, o mesmo acontecendo com o BE, testemunhando estes resultados a dificuldade que têm os pequenos partidos de reforçarem a sua influência municipal. Ao nível do poder local, a grande revolução está marcada para 2013, data em que metade dos presidentes de município não poderá voltar a candidatar-se em virtude da lei em vigor que limita o exercício da liderança local (assim como de outros cargos políticos) a três mandatos, evitando o fenómeno negativo da perpetuação no poder.Após os três actos eleitorais, o Presidente da República indigitou já José Sócrates do PS para presidir a um novo governo. As alternativas dividem-se entre a procura de um parceiro de coligação e o governo minoritário do PS. Com a recusa de Manuela Ferreira Leite, hoje quarta-feira, do convite formal endereçado por José Sócrates para que o PSD participe no novo governo, a alternativa parece ser a do governo minoritário que negoceia, lei a lei, o apoio no Parlamento. Isto porque as possibilidades de acordo global com CDS-PP, BE ou PCP se mostram irrealistas, tão distantes as suas bases programáticas relativamente ao PS e tão confrontados os seus líderes face a José Sócrates.*Doctor en Relaciones Internacionales. Profesor del Instituto de Ciencias Sociales y Políticas, Universidad Técnica de Lisboa. Profesor Invitado del Instituto de Estudios Políticos, Universidad Católica Portuguesa.
BASE
Entre os dias 4 e 7 deste mês de Junho decorrem, nos 27 países da União Europeia (UE), as eleições para o Parlamento europeu (PE). São umas eleições cruciais para o futuro da Europa como entidade política e, no entanto, apesar do acréscimo de poder de decisão que esta instituição soube negociar para si através das sucessivas revisões dos tratados e das reformas informais intercalares, a cidadania europeia mantém-se indiferente e as sondagens demonstram os níveis mais baixos de sempre nas intenções de voto. As sucessivas revisões dos tratados que instituíram, primeiro, as comunidades europeias e, depois, a UE, conduziram o PE a um lugar central no processo de formulação de políticas e, mais especificamente, no de tomada de decisões sobre a legislação que é aplicada em todo o território da UE. Ao mesmo tempo, esta centralidade foi contribuindo para um processo político mais escrutinado, mais transparente e mais democrático, contrariando a tendência eminentemente burocrática do processo de integração europeia que marcou as primeiras décadas desde o Tratado de Paris (1951). É mesmo possível dizer, apesar da pouca consciência que os cidadãos parecem ter do facto, que o PE se transformou, em poucas décadas, numa instituição central do próprio sistema político de cada um dos países membros da UE, já que cerca de 80% da legislação que se aplica em cada um deles emana das decisões que o PE produz em regime de co-decisão com o Conselho da UE, a instituição onde estão representados os estados. Assim, e de instituição consultiva formada por parlamentares nacionais dos 6 países membros originais, o PE transformou-se em instituição decisória cujos membros provêm de 27 países e são eleitos por sufrágio universal e directo. Os actuais 736 europarlamentares representam 500 milhões de eleitores e desempenham a importante função da agregação de interesses no seio da UE. Vale a pena sublinhar que as várias instituições centrais da EU e a relação entre elas demonstram uma especificidade política relativamente ao sistema de cada um dos países membros. De facto, ao nível europeu as instituições centrais partilham competências legislativas e executivas, o que transforma as suas relações num complexo sistema de cooperação e competição, de alianças e de agregação de interesses na elaboração de políticas. O PE, por exemplo, não dispõe do poder de iniciativa legislativa, monopolizado pela Comissão europeia, ao contrário dos parlamentos nacionais e a produção de legislação – directivas e regulamentos – é feita através de um procedimento complexo em que os interesses do PE e do Conselho da UE têm que convergir, designadamente através da aprovação de emendas às propostas originais provenientes da Comissão. Também vale a pena realçar, o que é crucial para compreender o alto nível de abstenção nas eleições europeias, que o PE não funciona de acordo com a lógica governo versus oposição. A eleição para o PE consiste, de facto, em 27 eleições nacionais separadas, em que cada país faz eleger ao PE um número específico de parlamentares de acordo com a sua expressão populacional no interior da UE. Assim, enquanto Malta tem 5 representantes no PE, a Eslovénia dispõe de 7, a Irlanda 12, a Dinamarca 13, a Bulgária 17, Portugal e a Grécia 22, a Holanda 25, a Roménia 33, a Espanha e a Polónia 50, o Reino Unido, a França e a Itália 72 e a Alemanha, país mais populoso da EU, 99. Uma vez eleitos, os europarlamentares não formam grupos nacionais; ao contrário, são integrados em grupos parlamentares europeus de acordo com a sua base ideológica. Das eleições europeias de 2004 resultou que o grupo mais representativo tivesse sido o Partido Popular europeu (PPE), logo seguido do Partido Socialista europeu (PSE). Contudo, isto não significa que o PPE governe a UE e que o PSE seja a oposição. Não há sequer um governo da UE no sentido clássico, demoliberal, do executivo centralizado, responsável pela aplicação da legislação aprovada numa câmara parlamentar. A instituição mais próxima de exercer essa função é a Comissão, com um presidente e um gabinete composto por comissários (um de cada país membro) a quem é atribuía uma pasta numa das matérias de actuação da UE como, por exemplo, comércio, agricultura, relações externas, segurança interna ou alargamento. Ainda assim, são os governos quem avança com os nomes dos comissários, restando ao Presidente da Comissão a distribuição das pastas.Significa isto que o debate no seio do PE entre os diferentes grupos parlamentares não corresponde à lógica governo versus oposição, nem tão-pouco, como é mais evidente, à lógica da disputa entre estados; ao contrário, a lógica própria do debate política no seio do PE é o da agregação de diferentes interesses – que decorrem das diferentes fracturas internas (nacionais, ideológicas, corporativas, pessoais) – em redor de algo que constitui, no final das contas e dos compromissos possíveis, a expressão do interesse europeu. Esta é, no fundo, a lógica da democracia representativa, e por isso considero tão importante o trajecto que conduziu à actual centralidade do PE no processo de formulação de políticas. Para além da co-decisão, o PE viu reconhecido, no Tratado de Lisboa, o direito de participação nos mecanismos de verificação da implementação da legislação europeia, o que torna esta instituição central, por exemplo, no escrutínio da transposição que os estados fazem – ou não fazem – dos actos legislativos em cuja aprovação participa e em que tem a oportunidade de introduzir emendas à proposta original da Comissão europeia e às sugestões do Conselho da UE. Numa revista rápida da evolução dos poderes do PE, há que sublinhar as competências orçamentais ganhas nos anos 1970; a aquisição de competências no âmbito da aprovação dos alargamentos da UE e nos acordos internacionais (através do Acto Único europeu de 1985); a co-decisão e o poder de convidar a Comissão europeia a apresentar propostas legislativas atribuídos pelo Tratado de Maastricht de 1992, para lá da simplificação e extensão da aplicação da co-decisão a novos campos, progressos verificados nos Tratados de Amesterdão, Nice e Lisboa. Para lá do papel legislativo e orçamental, o PE também viu muito reforçada a sua participação na nomeação e escrutínio da Comissão europeia, aquilo que mais se aproxima do controlo do executivo no modelo político demoliberal. Com o Tratado de Maastricht, o PE passou a votar a nomeação da Comissão europeia e com o Tratado de Amesterdão passou a votar a nomeação do Presidente da Comissão, indigitado pelos chefes de executivo dos países membros reunidos no Conselho europeu. A partir das eleições deste fim-de-semana, a eleição do Presidente da Comissão europeia – cujo mandato termina no final de 2009 – ficará ainda sujeita a um novo procedimento que implica o PE. Mais próximo do modelo de governação demoliberal, os resultados das eleições europeias serão fulcrais para a escolha do novo Presidente da Comissão; este continuará a ser indigitado pelo Conselho europeu – pelos estados, portanto – mas tendo em conta os resultados das eleições europeias e devendo sair das filas do partido europeu mais votado. Isto, e o facto de o actual Presidente da Comissão europeia ser um português – José Manuel Durão Barroso – tem tornado esta uma das questões centrais da campanha eleitoral em Portugal. O Primeiro-Ministro, socialista e do PSE, já deu o apoio português a Durão Barroso, do PPE, com base no argumento pretensamente patriótico de que o interesse nacional português é o de ter um nacional à frente do 'executivo' europeu. O mesmo fizeram José Rodríguez Zapatero, em pleno comício dos socialistas ibéricos em Coimbra, afirmando que um espanhol votará sempre num português, o trabalhista Gordon Brown (ainda) no poder no Reino Unido e a dirigente do SPD alemão que irá a votos ainda antes da escolha do presidente da Comissão europeia. Para estes dois últimos, a razão para ser a percepção de um certo contentamento com o equilíbrio institucional e de interesses nacionais conseguido pela primeira Comissão Barroso, não vendo necessidade de reabrir uma questão sempre muito sensível como é a da escolha do Presidente da Comissão. Neste caso, a lógica partidária ficaria em segundo plano. Contudo, os europarlamentares não têm que seguir a indicação dos seus partidos nacionais, e pode bem acontecer que, na próxima oportunidade, votem de acordo com uma lógica de partidos europeus, tirando partido do compromisso informal que atribui o cargo de Presidente da Comissão europeia ao grupo europeu mais votado. Significa que, pela primeira vez, vai haver uma relação quase directa entre uma maioria parlamentar no PE e o governo da UE. Com a futura transformação da Comissão ao abrigo do Tratado de Lisboa, também haverá a possibilidade de transformar esta instituição em algo mais próximo de um governo e dar-lhe mais coerência política – permitindo, por exemplo, ao Presidente escolher os seus comissários/ministros. E permitir uma legitimidade parlamentar à actuação desse executivo. Muito do afastamento dos cidadãos europeus das questões europeias deve-se, em meu entender, à ausência deste vínculo político do PE com o governo da UE e a percepção de que esta instituição é marginal no dia-a-dia dos cidadãos. Além do mais, a crise económica e financeira pronunciada na Europa agravou o sentimento de desamparo e fez concentrar as campanhas eleitorais no tradicional jogo do assacar das culpas, que opõe os governos às oposições. Os temas nacionais dominaram a campanha em todos os países, o que acaba por transformar estas eleições em combates prévios para eleições legislativas nacionais mais ou menos próximas. A dificuldade de fazer coincidir a importância que já tem o PE com a percepção que dessa importância têm os cidadãos em geral, e a elite política em particular, atesta algumas das contradições e paradoxos da integração europeia. Constituindo-se como um patamar adicional de governação que não pretende substituir a política nos estados membros da UE, mas fazer o contrário – isto é, adicionar mecanismos, políticas, instituições – confronta-se com a dificuldade própria dos corpos híbridos: não são uma coisa nem outra, às vezes são mesmo uma coisa e o seu contrário, desafiam os paradigmas dominantes sem serem capazes de contrapor algo inequívoco, desconcertando sempre a quietude de quem não suporta a ambivalência. Na política europeia também é assim; os cidadãos, os políticos, os actores económicos desconfiam da Europa, restando-lhes o consolo de a transformarem em bode expiatório da sua incapacidade, hesitação e falta de coragem. El autor es Doctor en Relaciones InternacionalesProfesor del Instituto de Ciencias Sociales y Políticas, Universidad Técnica de Lisboa
BASE